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sexta-feira, 31 de março de 2017

Lentamente

Minha virtude, meu mote
não mais me diz quem eu sou
muito menos porque vivo
Não tenho mais essa sorte
que do meu peito passou
só me resta um frio cativo

Não sei bem quem mais errou
e por mais que viro e revivo
não acho qualquer resposta
Tantos meses se calou,
meu lirismo tão altivo,
que de mim mesmo se desgosta

Qual verdade, qual meu crivo,
do pesadelo uma amostra
que do gosto me ressinto
Dessa sala não me livro
migalhas na mesa posta
é o q'Eu como tão faminto

Perdi o jogo, perdi a aposta
nem lavra, ouro ou quinto
me resta desse desejo
Das montanhas até a costa
acabei-me por extinto
todo gosto de meu beijo

Minhas mágoas de absinto
no meu quarto de despejo
guardo minha melhor veste
Manchada de vinho tinto
que lambo, esfrego e almejo
com toda sede do agreste

No caco d'espelho vejo
o meu sangue e minha peste
minha humilhante derrota
No embalo do realejo
mecânico e inconteste
cuja melodia me corta

Não há um deus que me ateste
que me indique a certa porta
d'esperança e acalento
Não há diabo que se preste
a me contar uma lorota
que me afaste esse lamento

Não há jardim e nem horta
onde eu colha o sacramento
ateu duma vida bela
Espinho seco, flor morta
sem horizonte no firmamento
sou nau sem mastro ou vela

Testemunho e testamento
minha herança e sequela
de coração aleijado
Desatino desatento
escondido na janela
do meu quarto rejeitado

Aqui jaz a sentinela
do anjo roto e maltratado
que quis o meu bem querer
Hoje é quadro d'aquarela
em lágrima aquarelado
me pintando sem me ver

Tento e tento ter cuidado
ao meu pranto recolher
destilado num só frasco
Suturado e retalhado
sucessivamente ser
sendo meu algoz carrasco

Venha, venha logo ver
não é ensaio de teatro
nem coroa dum infante
Meu ocaso é pra valer
sem pudor e sem recato
jaz em dois o diamante

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