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Poeta e apenas poeta

Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...

terça-feira, 22 de abril de 2025

A madrugada urge

A madrugada urge 
para os que dormem
e os que fazem poesia 
procuram o verso
perfeito
antes de serem 
descobertos
pelo sol

É no silêncio soluçante da noite
que a rima encontra
o tema e encarna a trema
abolida dos dicionários

A sirene que rasga o breu
sobressalta os bebês 
a acalenta os poetas
que não se sentem sós
nessa dor de quase morte
do verso não nascido
da vida não parida
e o que mais?

O que mais nada
venenos noturnos
fim de estrada 
penúltimo verso 
e mais nada.

domingo, 20 de abril de 2025

Livro, memória tangível da humanidade

O que é o livro? O que é este objeto que há séculos permeia o cotidiano dos saberes e memórias da humanidade? Como ele surge, do que é feito e como ele afeta a própria noção de quem e como somos? Não há aqui a pretensão de responder essa e nem outras perguntas que surgirão no decorrer deste ensaio, mas sim passear pela historicidade desse objeto que torna tangível a memória, que grava a fala e seus ditos, congelando-os em seu próprio lugar no tempo e no espaço.

Segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges, o livro é um assombroso instrumento criado pelo homem para ser uma extensão de sua memória e de sua imaginação. Seu advento resulta de uma série de invenções humanas voltadas ao desejo de perenizar a memória, a criação e as formas de significar e compreender o mundo. Esse anseio por eternidade é anterior tanto ao livro quanto à escrita. Não por acaso, tantos cantos sagrados como o Gita, a Ilíada, a Odisseia e o Beowulf foram transmitidos originalmente por meio dos versos. 

A oralidade, forma primeira da comunicabilidade humana, preservou por séculos as tramas fundadoras dos povos por meio de recursos mnemônicos: a métrica e o ritmo cadenciado asseguravam que toda a cosmogonia de uma cultura fosse retida e transmitida. Antes da escrita, era a alternância marcada de sílabas átonas e tônicas, breves e longas, que sustentava a mnemonia — a memória, em grego. A escrita, inicialmente em tabuletas de barro, madeira ou pedra, depois em rolos de papiro, pergaminho e couro, e finalmente em códices, passou a substituir progressivamente o movimento da oralidade pela fixação da palavra escrita. Seria, pois o livro anterior a própria escrita? E as cadências rítmicas dos versos clássicos uma espécie de primeira forma de registro de um livro ainda que imaterial?  Ou é na gênese da escrita, inegavelmente, a origem do próprio livro, afinal sua tangibilidade, materialidade física são condições para sua perfectibilidade?

O livro ocupa um lugar singular entre os inventos do intelecto humano, pois molda a própria noção do ser, sua percepção de si mesmo e do mundo que o cerca. Segundo Vilém Flusser, em A Escrita: há futuro para a escrita?, a escrita não sofre da mutabilidade essencial da oralidade. Por isso, permite que o conceito de história seja fundado: o mito é atualizado a cada vez que é cantado, enquanto o texto, uma vez fixado, narra não apenas um enredo, mas testemunha o tempo em que foi escrito. O livro e a escrita introduzem uma nova percepção temporal: em vez da repetição cíclica dos mitos, instauram a sucessão linear dos acontecimentos. Em seu Soneto 234 Confessional, Glauco Mattoso canta: “Palavra voa, escrito permanece, / garante o adágio vindo do latim. / Escrito é que nem ódio, só envelhece.” O livro, portanto, não possui a vivacidade da voz, mas tem a eternidade como sua maior aliada — e com ela, a capacidade de registrar e atravessar o tempo. Seria essa a razão pela qual o livro é definido por sua tangibilidade? Por sua permanência ao longo do tempo se não de maneira imutável mas de uma maneira cuja sua mutabilidade possa ser percebida? Os concílios católicos que elegeram os livros canônicos são um registro de uma mutabilidade e assim distinta daquela mutabilidade do mito que se altera e alterna com o passar dos cantos de geração em geração sem que sua forma anterior tenha de fato um registro que um dia existiu.

Homero talvez fosse uma singularização dos homeridas, os aedos que, ao longo dos séculos pré-escrita, compuseram e transmitiram seus cantos até que estes fossem fixados com o advento da escrita. Por séculos, a ficção circulou em um regime em que a autoria não era relevante: só com a imprensa é que a identificação dos autores passou a ser exigida, tanto pelos dividendos quanto pela responsabilização dos conteúdos. Até então, apenas os textos dedicados à Verdade — como os sagrados, filosóficos e teológicos — exigiam autoria, pois carregavam a autoridade e o testemunho de quem os escrevia. Com a evolução da imprensa e a revolução técnico-científica, essa relação se inverteu: os textos autorais tornaram-se, em sua maioria, aqueles que os gregos chamariam de mímesis, enquanto os textos voltados à aletheia passaram a ser coletivizados. A academia moderna já não vê a mesma validade em uma única voz: no texto científico, o poder está no respaldo coletivo, na comunidade que atesta e valida o discurso. Entretanto, na contemporaneidade, aparece um novo apagamento da autoria: inteligências artificiais, fake news e a reprodutibilidade técnica tornaram banal a cópia, a mescla e a mixagem de textos e ideias de distintas fontes. A autoria já não é o centro da preocupação — assistimos, talvez, a um retorno à fluidez pré-imprensa. Se no século XX Barthes declarou a morte do autor, no século XXI o próprio conceito de autoria parece estar em perigo. 

Estaria a própria tangibilidade do livro também em perigo neste século? O livro, transformado em códigos, transcritos em bytes e projetados em uma tela de LCD é o mesmo livro que era quando escrito em papiros de juta, em pergaminhos de couro ou códices de papel em que o leitor podia percorrer com os dedos, anotar nos cantos ou até rasgar uma página que estava ali no alcance das pontas de seus dedos? Assim como o conceito de autor, a figura do leitor também se transforma ao longo da história. Nos cantos da antiguidade, a leitura era coletiva, oral, performática — e a distinção entre autor e leitor era tênue, quase inexistente. Um povo era, ao mesmo tempo, criador e transmissor de suas narrativas. Na tradição grega, o texto era entoado em público; na Idade Média, passou a ser murmurado, num sussurro entre os lábios. Apenas na modernidade a leitura silenciosa se tornou a norma, marcando o início de uma experiência íntima e individual com o livro. 

Clarice Lispector, no conto Felicidade Clandestina, sintetiza essa relação com rara precisão: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.” A leitura, na contemporaneidade, deixa de ser partilha comunitária e se torna experiência solitária e amorosa, revelando o quanto o livro passou a habitar os domínios mais profundos da subjetividade humana.  E um livro, que não pode ser mais tocado como antes na tela de um Kindle, pode garantir que a menina se transforme em mulher como descrita por Clarice? Decerto que o apego às letras digitais será distinto daquele que tocava a tinta sobre o papel e nele podia marcar com sua própria grafia, porém a mutabilidade do livro é capaz de encontrar novas maneiras de se adaptar a relação do leitor e do livro para seu constante e novo momento.

Eis que, nesse jogo temporal, surge o jugo do editor — figura que assume múltiplas formas e funções ao longo da história. Desde aqueles que primeiro fixaram os mitos em linguagem escrita, passando pelos bibliotecários de Alexandria, que uniformizaram versões divergentes de obras, elegendo as que se tornariam definitivas. Mais tarde, os membros dos concílios católicos determinaram, séculos após o surgimento das escrituras, quais livros comporiam a versão canônica da Bíblia,  No século XIX, os editores de jornais moldaram a narrativa dos romances folhetinescos, publicando-os em capítulos com vistas à venda da maior tiragem possível. Hoje, o editor se transforma novamente, é uma peça dentro da estrutura do mercado editorial de eventos como a FLIP e as Bienais do Livro, mas também lidando com os desafios impostos pelos algoritmos que governam o fluxo de textos nas redes, com base em critérios tão imperscrutáveis e obscuros quanto aqueles que condenaram como apócrifos tantos textos durante o medievo.

 Em uma sociedade ágrafa, as técnicas mnemônicas eram o único meio possível de preservar a memória coletiva. Por isso, eram reservadas às obras fundamentais — os mitos que compunham a identidade e a cosmogonia de cada povo. Nesse contexto, a predominância dos épicos era absoluta: sua forma fixa e poética, estruturada por métrica e ritmo, permitia a preservação de narrativas com centenas de versos. Com o advento da escrita, o dispêndio de recursos para conservar tais obras foi drasticamente reduzido. Já não era necessário treinar aedos por toda uma vida para garantir a sobrevivência dos textos sagrados. Ainda em versos, mas agora libertos da necessidade exclusiva de memorização, começaram a circular também as comédias, as tragédias e a poesia lírica — além, é claro, de toda a produção filosófica de seu tempo.

Com os copistas medievais, a produção e preservação de textos alcançou um novo patamar, permitindo que as cantigas populares — de escárnio, de amigo e de maldizer — também fossem registradas para além da memória oral. Mais tarde, com a evolução das técnicas de impressão, a partir dos rudimentos da xilogravura e de outras formas correlatas, uma nova revolução se instaurou. As técnicas mnemônicas, outrora essenciais, passaram a perder espaço progressivamente. Nesse novo contexto, a prosa começou a se destacar entre as grandes obras nacionais, como é o caso de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

No auge da Belle Époque, é a evolução das técnicas tipográficas que permite ao outrora sonetista Mallarmé tornar-se precursor e inspiração para diversos movimentos literários, especialmente com sua obra Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Se por séculos a poesia ocupou o lugar de gênero maior da literatura, no século XX, com o advento das máquinas offset e da impressão digital, a prosa firma sua hegemonia — um processo que o século anterior já prenunciava. Os movimentos modernistas abraçam o verso livre e sua autonomia em relação às técnicas mnemônicas, numa era marcada pela plena instauração da reprodutibilidade técnica. A popularização de novas tecnologias possibilita o surgimento de movimentos como o Concretismo e o OULIPO, que exploram os limites da linguagem por meio do domínio dos aparatos que a ciência oferece. Já o século XXI se apresenta com uma miríade de formas de fixação da memória: o livro assume formatos digitais, podem ser lidos em tablets, celulares, notebooks, e e-readers. Os textos transitam à velocidade da luz pelas redes de computadores, e os meios de publicação e produção textual tornam-se acessíveis de um modo que nenhum dos autores dos textos sagrados poderia sequer imaginar. 

As condições materiais do livro foram determinantes na transformação dos paradigmas que envolvem sua concepção, autoria, edição e recepção. À medida que as técnicas de produção, circulação e preservação da escrita evoluem, alteram-se também os modos de escrita e leitura possíveis. O estilo, a linguagem e mesmo os gêneros literários moldam-se às possibilidades e limitações oferecidas por cada suporte. Compreender a história dessas transformações técnicas é essencial para entender como a linguagem não apenas se adequa, mas se funde às materialidades de sua época, formando com elas um amálgama indissociável entre forma e matéria.

 

terça-feira, 8 de abril de 2025

Pentágono Mágico de 5⁵ cantos

Te tenho tentado
calado num riso
do certo e errado
no peito ferido
amor proclamado

Te tenho contado
medido, preciso
e cronometrado
fazendo registro
de todo passado

Te tenho cobrado
tentado teu ciso
governo e estado
valendo teu guiso
presente embalado

Te tenho marcado
por onde te piso
de faca e de fado
de dentro do ouvido
teu endiabrado

Te tenho cuidado
cuidado te aviso
quebrado no quadro
confesso mentindo
todo apaixonado 

segunda-feira, 31 de março de 2025

Por seu paladar

Resoluta, Bianca saiu de sua morada e escolheu, depois de muito procurar, o espécime pretendido entre os mais saudáveis, belos e de macia carne. A caça não era de modo algum escassa e ela também não tinha qualquer pressa. Aguardou até que o espécime ideal lhe cruzasse o caminho. O abate foi fácil, fácil demais, quase um tédio pela expectativa que tinha de antemão. Mais trabalho teve para higienizar as unhas de todos os resíduos. Mas o cheiro, o cheiro era exatamente aquele que se lembrava.

Mesmo sem o hábito não teve dificuldades para limpá-lo e separar os cortes mais nobres. Dispensou os ossos, nervos, vísceras, sebos e as partes de segunda categoria. Só lhe interessava os cortes mais nobres acondicionados, enfim, em seu refrigerador. Exceto o primeiro corte que reservou e o deixou descansar no varal de sua lavanderia. Quando retornou sorriu ao ver sua peça, escolhida com muito esmero, coberta e já semeada pelos ovos sarcófagos. 

Estava feito e ela pôde sair em busca de mais. Do mercado local trouxe legumes e hortaliças. Do empório trouxe uma especiaria eslava que sequer saberia pronunciar. Chegado o momento fatiou as cebolas roxas e brancas, rasgou o hortelã e picou o alho-poró e os pimentões amarelos, vermelhos e verdes. Do corte do varal pinçou todas as iguarias verminosas e prontas para o consumo. De um segundo corte, refrigerado, seccionou um bife de três dedos de altura, como rezavam as cartilhas dos melhores chefes internacionais.

Em fogo forte azeitou a frigideira e acrescentou dois dedos de manteiga para dar um toque francês. Então, adicionou cada item preparado, do mais sólido ao mais tenro, à frigideira apreciando cada chiado e pacientemente conduziu a reação de Maillard pois queria todo aquele contraste dourado da superficie com seu interior sanguíneo. O sol morria, vermelho, lá fora quando o tempero do leste europeu, ocre e terroso, deu o último toque. Era uma receita antiga, emanava uma fragrância que invadia todos os lares de sua vizinhança. Orgulhosa imaginava do porteiro à vizinha do andar de cima salivando por seus dotes culinários.

Finalizada a cocção, posta a mesa e servido seu prato, percebeu que sua taça repousava vazia sobre a mesa. Praguejou, irritada, por seu esquecimento do acompanhamento mais pertinente. Rangeu a cadeira, circundiu a mesa e a sala, destrancou a tetrachave, passou pela porta principal e foi, em passadas apressadas, à padaria preferida comprar coca-cola.

domingo, 30 de março de 2025

Quadrado mágico de 4⁴ cantos

Subindo a serra
num turbilhão 
que logo inverna
seu alazão 

Descendo a terra
nesse estradão 
de pé, de perna
pra ter seu pão 

Prevendo a guerra
pro seu canhão 
numa caserna
ter o quinhão 

Sabendo que erra
e tudo é vão 
sem vida eterna
e sem razão 

sexta-feira, 28 de março de 2025

300ml

Eu e minha boca,
meus pés doloridos 
Tomando uma só 
num bar de sinuca
me sinto tão só 
triste na tristeza
que não acaba nunca

terça-feira, 25 de março de 2025

Triângulo magico de 3³ cantos

Feito festa
cai o gato
na cidade

Feito lua
ladra o lobo
na floresta

Feito luto
roi o rato
no porão

domingo, 2 de março de 2025

Tragédia bibliotecária


Zelosa, ela vivia entre estantes, prateleiras e fichas catalográficas.  Piso em falso ou terremoto? Não se sabe, mas sob livros, fora soterrada, morta e coberta de razão..

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Nunca mais café

Mulher feita e dona
do próprio nariz
Disse resoluta 
que ela nunca mais
serviria café
Comprou uma chaleira

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Poetautista

Pergunto com verso
quem disse que tem
só essa ou aquela
maneira de brincar?

alinho brinquedos
como uma criança 
no chão do meu quarto 
escrevo poemas

alguns por tamanho 
outros pela cor
arestas co'arestas
rodas com os pés

meu jeito, meu verso 
brinquedos-palavras
tão inesperadas
no modo de usar

Nestas teclas


Os seus dedos
longos languidos
e angulares
eram todos
delicados
 
tão suaves
que apagavam
meus pesares
pensamentos
singulares

poética
em seus sons
e meus sonhos
os seus dedos
sobre mim

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Djeina

quase dói 
quando sinto
não me sento
no banheiro
porque tenho
medo do eco
desta lágrima
nesta chuva 
no chuveiro

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

SteamPunk Fantasy em cinco palavras

 Raivosas ovelhas luditas quebram teares.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Sem fingir costume

Mote: “escovar a história a contrapelo” Walter Benjamin

Atento, com olhos semiabertos,
como quem penteia a memória 
o filósofo cata os piolhos
das verdades meias e inteiras

Entre ser monge ou barbeiro
hábito e manto contra pelos 
Entre o padre e a prostituta 
há seus pedidos de joelhos

A cada deus, a própria prece
que sonha com seu paraíso
profano, divino ou terrestre
cada qual feito por um juízo 

O sagrado só o é entre aqueles 
que comungam da mesma fé
seus segredos, seus votos, são 
pros devotos e nada mais 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Quanto vale a poesia?

Pode me propor:
moeda, pix, nota...
o importante é a troca
e não o valor!