Publicação em destaque

Poeta e apenas poeta

Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...

Mostrar mensagens com a etiqueta Ensaio. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ensaio. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Manifesto

Lucas C. Lisboa

Estudo na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e por esse nome fica bem claro que a filosofia não faz parte das ciências humanas e duvido muito que se encaixe bem como qualquer outra ciência. Sim, isso parece piada, mas me leva a pensar no porque de nosso curso ser tão engessado pelas normas dessas ciências que, de certo modo, não deixam nada a dever à Escolástica Medieval! Com normas, métodos, restrições e mil barreiras ao livre questionamento e livre pensamento que, inocentemente, achei que eram fundamentos da Filosofia.

Cheguei para o curso de filosofia com vários nomes e idéias, lidos em livros de história, vistos em documentários e até mesmo citados em mesas de bar. Tive a ilusão de que esses nomes fossem importantes e que eu os estudaria no curso de Filosofia. Fui, entretanto, surpreendido por uma porção de nomes que nunca tinha ouvido falar na minha vida, nomes que foram esmiuçados aos mínimos detalhes sob a justificativa que eram os percussores ou os herdeiros de um daqueles nomes importantes.

Durante muito tempo me culpei, pois, por desleixo meu, eu saí do ensino médio sem conhecer a fundo nomes como Nietzsche, Marx, Maquiavel, Jean Bodin, Rousseau, Montesquieu, Sartre e outros tantos mais que, dentro de sala, eram apenas citados como se todos ali já tivessem lido e relido cada obra e assim fosse necessário ir aos autores periféricos para um maior aprofundamento daqueles temas que eu já devia saber a fundo desde o primeiro dia de faculdade! Os anos de graduação se sucederam e minha esperança se renovava a cada semestre. De quando em vez um ou outro aparecia, mas em seu texto mais obscuro e árido, aquele mesmo que ele nunca completara, lançado postumamente, em língua estrangeira ou de sorte um texto com dúvidas de sua autoria.

Com o tempo percebi que aqueles textos e filósofos obscuros eram o nicho de pesquisa de meus professores. Não duvido que fossem eles fascinantes de se pesquisar, afinal, não estavam saturados como os cânones! Porém, eram fascinantes para quem dominava bem os fundamentos, as idéias principais daqueles filósofos sobre os quais orbitavam os demais. Tive um espanto ao ser apresentado a conceitos profundamente formulados, que meu professor havia desenvolvido com primor. Mas novamente não havia nenhuma preocupação em sedimentar as bases da compreensão daquele conceito. Sentia-me como se no colégio estivessem tentando me ensinar a multiplicar antes de aprender a somar (e confesso que às vezes alguns professores já chegavam direto com a raiz quadrada).

Felizmente, nem todos os professores queriam que eu lesse Guimarães Rosa antes de aprender o alfabeto, tais professores que realmente tinham o dom do ensino conseguiam me levar de um ponto ao outro, começando dos conceitos mais básicos, para depois reconstruí-los em conceitos mais sólidos.

Tais professores eram poucos, na maioria das aulas eu me sentia como um rato de laboratório, um claque obrigado a prestar atenção nos detalhes da última pesquisa do professor.  Eu via uma inversão perversa, os autores fundamentais apareciam em disciplinas esporádicas, optativas, enquanto que nas disciplinas obrigatórias me deixavam frente a trabalhos restritos em seu conteúdo e abrangência.  Comecei a enxergar nisso um descaso de determinados professores, um desinteresse total pelos alunos. Como se não importasse para eles o aprendizado, a formação geral de cada um apenas, quando muito, querendo-os para suas próprias escolas filosóficas, como se desejosos de um coro para reafirmar suas idéias.

Tanto descaso ficou muito claro quando um professor ao criticar o método de "outros professores" comparou as notas que cada um dava a um mesmo aluno, dizendo que era impossível que aquelas notas tão altas fossem condizentes com a capacidade do aluno. Em nenhum momento questionou quanto a sua própria capacidade de lecionar, de fazer o aluno se interessar por seu tema e muito menos que fatores acadêmicos e extra-acadêmicos levaram àquele aluno aos resultados que ele observava.
Ao longo do curso de filosofia testemunhei o abandono de muitos colegas, muitas crises pessoais e muitos trancamentos repentinos. Como nenhum professor tomou uma atitude depois de tantos casos graves de suicídio e de tentativas se tornou um mistério para mim. Quando questionados simplesmente respondiam que não foram procurados, não lhes pediram ajuda. Tal pode muito bem ser uma desculpa perfeita se esqueço é claro que quem tem problemas muitas vezes não sabe ou não consegue pedir ajuda e sequer sabe dos meios que poderia recorrer para pedir ajuda.

Tais questionamentos me fazem pensar se os professores sabem quais são seus deveres para com os alunos. Percebi logo que a universidade é um mar de burocracia onde os professores se resguardam fechando os olhos para os direitos do aluno. Vi muito professor forçar a data de um exame especial para dois dias depois da prova final, sem tempo para se estudar minimamente. Não é dito que o professor só pode marcar um exame especial para antes da data prevista em calendário se todos os alunos concordarem.

São tantas as frustrações ao longo do curso que não entendo como essa filosofia que aprendi durante esses anos todos um dia influenciou revoluções, mudou a forma que o homem pensava a si mesmo. E tenho mais dificuldade em como foi possível que no Maio em Paris houvesse professores-filósofos juntos com os estudantes! Há uma falta de Empatia que me sufoca nesse curso, é esse o maior problema da filosofia: Como se libertar do engessamento, do rigor, do distanciamento academicista, como tornar a filosofia viva e fértil para os seus e também para a sociedade.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A forma da racionalidade

Lucas C. Lisboa

O Século das luzes não viu nascer apenas a Indústria têxtil inglêsa e o protestantismo de Calvino como sucita Weber em seu livro célebre. O mesmo fio condutor  que o autor aponta como germe de ambos os processos também pode ser visto nas artes seja na música onde surge a notação musical tal qual é utilizada, com suas regras, medidas e formas bem estabelecidas ou seja na literatura onde surge o movimento árcade.  Todos esses eventos marcam uma ascenção de uma racionalide pragmática que busca os melhores meios para seus fins.

O arcadismo surgiu como uma proposta literária que se primou pela forma, estrtuturada e com uma definição dos meios para se alcançar uma poesia perfeita. Definima não só a forma como também seu conteúdo. Os temas, os metros, as regras foram todas estabelecidas rejeitando o obscuro Barroco e adota principios norteadores como "inutilia truncat" e " "aurea mediocritas" onde o primeiro dizia para se cortar os excessos e rebuscamentos desnecessários à arte e o segundo estabelecia o diálogo direto com o quotidiano e racional em detrimento do irracionalismo  sagrado e profano.

Tal processo racionalizando da vida humana tem seu ápice no século XIX onde a industrialização da Inglaterra já deixou o reduto têxtil e avançou para uma complexa máquina fabril e  mercatil em uma forma consolidada de capitalismo que possibilitou o surgimento do império que nunca dorme. A França além de ter lançado os ares da revolução  também propagou o Parnasianismo que, depois de um aparente recuo romântico na segunda metade do século anterior, surge com uma proposta ainda mais profunda que a dos Árcades.

Os Parnasianos se protaram como cientistas dos versos começam a dissecá-los em sua anatomia, prestando o trabalho de definir a sonoridade de cada vogal, de classificar palavras e versos quanto ao seu sexo e tonicidade. O tratado de Olavo Bilac sobre versificação explicita elementos da poesia nunca antes explorados, categorizados e aplicados com tamanha precisão e cuidado. O título de ourives das palavras é mais que adequado àqueles que aprenderam num processo cuidadoso e racional a extrair a máxima expressividade da forma.

Contudo tal processo não se encerra e se cristaliza com o parnaso, pois a ascenção da racionalidade ganha contornos de outra dimensão no século seguinte. A morte de deus é decretada e o homem passa a ter a si como único responsável, racional e absoluto dos seus atos. Mesmo os horrores das guerras não  fazem mais que reafirmar a responsabilidade do homem para consigo. Esse deslocamento também se nota na esfera econômica onde a própria lógica, a própria economia passa a valer por si mesma sem que seus rumos sejam ditados por outrem que a própria lógica do capitalismo financeiro.

Com a virada do século a poesia se devora num processo antropofágico dos valores estéticos vigentes por seu caráter profundamente racional. Pois se aparentemnte o verso dito livre é uma reijeição à racionalidade instrumental o mesmo não deixa de ser uma complexificação  da estética anterior numa conciliação racionalizadora dos conflitos e questionamentos dessa época.  Soa o modernismo como uma rejeição da racionalidade tal qual o capitalismo de sua época foi dito como selvagem, mas ambos são um processo extremo de racionalismo onde o indivíduo comum perde a referencia dos processos internos.

As novas experiências modernistas são de tal maneira profundas e inovadoras que o público médio só pode enxergar nela uma iconoclastia, uma ausência de parâmetros e normas. Mas tal visão é tão errônea quanto se um medieval que ao ver um avião em pleno vôo acreditasse que se trata de um feito mágico. Só que a magia modernista funciona como a apresentação de um mago de palco. Onde se troca a assistente linda que desvia o olhar do público enquanto o truque se passa do outro lado por  um discurso de liberdade absoluta da forma como um engodo para que seus leitores não vejam os usos formais que se escamoteiam em suas obras. A sutileza do poeta que declara que seus poemas surgem num rompante e depois afirma que sas palavras mentem?

Os seguidores destes porém tentam imitar os seus feitos levando-os ao pé da letra acreditando que a magia do versos está nas palavras do mago, em seu "ocus pocus" , pois foram completamente seduzidos pela assistente. Os modernosos imitam a aparência da poesia modernista mas engoliram o embuste estético e sequer têm consciência da busca pela primazia estética dos versos pois não lhes foi dito o truque secreto que se passou bem debaixo dos seus olhos.

Contra o ataque infundando contra a forma há a proposta oulipista que não se propõe uma mera revalorização  da forma trazendo-a para o uso afinal a mesma nunca deixou de fato o verso apenas foi ocultada magistralmente pelos modernistas. O OULIPO pretende explorar os limites da palavra  sem depender de um obscurecimento da forma para fazer belas as letras mas sim tornar a própria engenharia da escrita bela.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Comunicabilidade e Experiência:

Florbela Espanca e Marina Colasanti;
uma problemática de Walter Benjamin à luz de Ítalo Calvino

INTRODUÇÃO

A Literatura possui uma potência própria que lhe distingue das outras formas de expressividade humana. Tem também uma função que lhe é própria e uma capacidade única de transmitir a experiência onde as demais formas costumam não ser capazes de alcançar.

Através de Walter Benjamin, filósofo da Escola de Frankfurt e Ítalo Calvino, escritor Italiano e pensador do OULIPO, pretendo explicitar a narratividade do conto “Concerto de Silêncio, para duas vozes” de Marina Colasanti, recorrendo ao soneto ao soneto “Tarde de Música” de Florbela Espanca para realçar os elementos da transmissão do conhecimento e da narratividade.

Marina Colasanti é uma escritora brasileira (mas nascida na Eritréia, uma colônia da Itália no continente africano, em 1937) formada em jornalismo cuja a obra é extremamente polivalente indo de livros infantis, poemas, minicontos, fábulas e contos de fadas. A obraque tratarei é do livro Contos de amor rasgados publicado pela primeira vez em 1986.

É uma escritora de fortes tendencias minimalistas, tendo gosto pelos minicontos procede de maneira inversa ao habitual da tessitura de histórias, pois ao invés de nelas acrescentar detalhes e mais detalhes para completar e enriquecer o texto Marina busca, muitas vezes, cortar e recortar tudo que considera supérfluo e não faz parte do cerne com o qual trabalha.

Mesmo escrevendo em prosa, Marina tem um rigor formal e um cuidado especial para direcionar o seu leitor para as pequenas grandes surpresas que se depara na leitura de seus contos que por tantas vezes sequer passam de uma página.

Florbela Espanca é uma poetisa portuguesa (08/12/1894-08/12/1930) do simbolismo tardio português, que não cedendo aos movimentos libertários do modernismo produz uma obra composta em grande parte por sonetos e outros versos da poética clássica.

Primando tanto pela forma quanto pelo conteúdo produz obras de extrema força e visceralidade em certas fazes para depois ser contrabalançada com uma incrível leveza e oniricidade.

Preocupando-se com a sonoridade de seus versos não deixa de se atentar para detalhes que foram se perdendo com o modernismo. Não obstante o seu isolamento da vanguarda portuguesa tem como grandes apreciadores de sua obra poetas como Antero de Quental e Fernando Pessoa.

A proposta deste trabalho se encerra em explicitar os problemas e funções para a comunicabilidade presentes e cuidadosamente trabalhados tanto na forma quanto no conteúdo das duas obras selecionadas.

Através de recursos estilísticos as obras Florbela Espanca e Marina Colasanti pretendem comunicar e transmitir uma experiencia própria e intensa. Uma experiência que não pertence somente as autoras mas que são compartilhadas por toda uma tradição de narradores como veremos com Walter Benjamin e Ítalo Calvino.

FUNDAMENTAÇÃO

Em "O Narrador" Walter Benjamin problematiza capacidade do homem de transmitir a experiência. Toma como maior vetor da experiencia a figura do narrador mas acredita que tal atividade, a da narrativa, encontra-se com seus dias contados.

Walter Benjamin traça uma genealogia da arte de narrar passando pelas figuras do camponês sedentário e do marinheiro comerciante em tempos remotos. Onde o primeiro dava conta da sua experiencia e da experiencia de seu povo transmitindo assim tal sabedoria em sua narrativida e e o segundo era um agregador das experiencias que lhes foram narradas e vividas nas mais distantes terras. Com a idade média surgem as corporações de ofício onde o mestre sedentário acolhia aprendizes migrantes e de tal relação havia a transmissão e síntese artesanal das diferentes experiencias.

A narrativa tem para Benjamin um elemento utilitário essencial. O Narrador é uma figura que sabe dar conselhos. E se dar conselhos se tornou algo antiquado e incomodo foi porque as experiências deixaram de ser comunicáveis.

"Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre uma continuação de uma história que está sendonarrada. Para obter essa sugestão, necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um sujeito só é receptivo a uma história quando verbaliza a sua situação)." (Benjamin, Walter. O Narrador)

Entre a Narração e a Informação há um abismo de natureza geográfica e substancial, enquanto na narrativa o distanciamento e imprecisão são fundamentais para a compreensão e a transmissão da experiencia, na informação a materialidade, a proximidade e a precisão dos fatos são fundamentais.

"O Narrador retira da experiencia o que ele conta: sua própria experiencia ou relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiencia dos seus ouvintes" (Benjamin, Walter. O Narrador)

Para a narrativa, explicações elaboradas sobre as causas dos acontecimentos são dispensáveis e até mesmo indesejadas, mesmo que os fatos sejam narrados com exatidão os termos psicológicos que engendram a histórias são implicados na compreensão do leitor.

O Episódio narrado, distinto do informado, adquire per si uma dimensão muito mais extensa do que o próprio fato devido a importante contribuição do leitor para a construção daquela experiencia.

Tal concepção de narrativa de Benjamin se alinha com a perspectiva das propostas de Calvino para a literatura. O que faz calvino é mostrar uma possível solução para o problema da comunicabilidade que Benjamin alega ter se perdido na sociedade da Informação.

Calvino, destaca e recorre aos mais diversos clássicos e atualidades em busca das potencias que permitiriam tal transmissão da experiencia. Se Benjamin fala do distanciamento e imprecisão necessários à narrativa para sua função. Ítalo descreve a dicotomia Peso e Leveza tratando e sistematizando o que Benjamin apenas descreveu e indicou.

Não se trata de fugir do peso da realidade através de uma mera atmosfera de sonhos e nebulosidades, trata-se principalmente do desvio do olhar direto para um relato da realidade por uma ótica que retire de si o peso. Comparando dois versos semelhantes um de Dante e outro de Cavalcanti.

Tratando da neve suave o primeiro lhe dá concretude por meio do verbo comer, transformando-a num ato fechado e acabado enquanto o segundo acrescenta apenas um suave "e" que universaliza e a cena retirando-a da materialidade.
Calvino dá três conceituações para a Leveza:

• "um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são analisados
por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita
consistência"
• "A narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem
elementos sutis e imperceptíveis ou qualquer percepção que comporte um alto grau de abstração"
• "uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor emblemático"

ANÁLISE

A economia da narrativa se mostra clara e evidente desde a primeira frase/parágrafo onde a voz que narra se limita a dizer: “Surda era Otília.” A frase é simples, direta, sucinta mas de uma total leveza pois escapa-lhe um significado preciso pois se trata de um aparente paradoxo afinal “Oto” é a raiz lingüística do nome Otília e não por acaso significa o que é relativo aos Ouvidos. Sim, em uma única frase Colasanti marca o tom de seu conto, sua personagem principal se chama Otília e é surda, um paradoxo hiperbólico.

Sem conseguirmos resolver a profunda imprecisão de Quem é Otília continuamos a leitura do conto. A mulher-ouvido-surda “Não ouvia as palavras de amor que ele dizia” e “Não ouvia as palavras de amor que ele cantava”, são pequenas e aparente obviedades mas pela tensão provocada por seu nome adquirem um significado especial, um enorme sentimento de desajustamento e um insipiente desejo de resolução desse absurdo.

Mas é no parágrafo seguinte que percebemos o quão grave é a surdez de Otília, e juntamente com ela começamos a percorrer o caminho em busca de uma solução para sua incapacidade comunicativa com o amado. (Amado esse, vale à pena salientar, sequer é nomeado pela voz narrativa, a despeito de sua posição aparentemente fundamental importância a continuidade da história, sendo apenas “ele” ao longo do conto.)

Otília não consegue acessar seu amado mesmo através dos seus demais sentidos, toca-lhe a boca, debruça-se sobre o violão e nada chega até ela. A narrativa reforça a palavra “nada” pela repetição reiterando o vazio ocasionado por essa incomunicabilidade que desenrola, se agrava e começa a sufocar tanto Otília quanto o leitor. São pequenas frases, bem concatenadas mas que nada nos dizem sobre Otília além do que está explicitamente escrito.

Pela leitura do texto não conseguimos descobrir quantos anos tem Otília ou seu amado, como se parecem, como se vestem, de onde são, o que fazem de suas vidas, o que sabem do mundo, suas crenças ou aspirações menores. Tudo que sabemos é que Otília é surda e que seu amado é músico, outro paradoxo que tão bem é explorado na obra.

Toda essa imprecisão implica o leitor nessa experiência, permite que ele misture essa nova experiencia que lhe é narrada com as tantas que encerra dentro de si, tal mistura não ocorre por capricho do leitor mas pela necessidade do texto que exige dele tal implicação para que preencha as lacunas e faça parte da própria narrativa. O rosto de Otília não está descrito no conto, cabe ao leitor, entre suas memórias e experiencias reconstituir o rosto dela da forma que mais lhe identifique.

Benjamin coloca nesse ponto a bem clara diferença entre romance e narrativa, pois o romance lhe dá uma obra acabada onde o leitor não precisa se implicar, o romance não compartilha, não se constitui e nem se dissolve na experiência.coletiva, é uma obra individual de seu autor. Já a narrativa necessariamente parte de uma experiencia bebida de si e do coletivo e ao ser narrada se mistura com outras tantas experiencias dos interlocutores que torna-os autores daquela narrativa e como tais identificados e propícios para a transferência das experiências presentes na obra.

A prisão do silêncio, da incomunicabilidade, acabam por torturar profundamente Otília e provocar nela uma reação impensada e radical: “Até que um dia, tomada de doce fúria, cravou os dentes no pinho que ele dedilhava.” Mas toda radicalidade do ato, todo seu peso negativo se esvai por uma única palavra: “doce” não se trata portanto de uma atitude que rompa com o ritmo do conto é a sua mais perfeita continuidade. A fúria, tão surreal quanto intensa, se torna plausível e suave com a leveza incutida pelo adjetivo doce.

O cravar de dentes de Otília é profundo, intenso visceral, fluindo por seus dentes, ossos e pele. E somente nessa atitude única se dá o que ela desde sempre ansiava. sentir seu amado de modo pleno, intenso e até ofuscante como quem se vê de repente em um ambiente claro depois de muito tempo nas trevas.

A sinestesia construída nesse paragrafo é deveras singular: Afinal, Otília começa a ouvir pelas vibrações do tato e os sons que vem por esse tato a ofuscam, algo típico da visão. É um processo sinestésico de três fases e não meramente duas como é o mais comum. Não é meramente uma cor que tem cheiro mas a sensação táctil de um som que ofusca.

E tal sinestesia é um forte elemento constitutivo da leveza nesse conto tal como Calvino explicita ao exemplificar o paradoxo da Cabeça da Górgona carregada por Perseu. Que por seu enorme poder se deve deixar escondida sendo reservada apenas aos inimigos mais terríveis. E no contraste gritante entre sua força e fragilidade fazendo com que o herói tome sempre um enorme cuidado em seu trato para que ela não pereça.

Após a aparente resolução do conflito do conto (a característica básica de um conto é a existência de um único conflito principal conforme Nádia Batela Gotlib em seu livro Teoria do Conto) o conto como se fosse um mito ou um conto de fadas adquire um elemento cíclico e poético ao anunciar no sucinto parágrafo seguintes (aos moldes do parágrafo que abre o conto) “Surda, porém, Otília não falava”.

O leitor se deixa pegar de surpresa nesse trecho, é uma reviravolta no conto. Dentro do mesmo conflito se coloca uma nova face aparentemente impensada até então, mas novamente de uma simplicidade espantosa. Afinal Otília também era muda. O parágrafo seguinte reforça o caráter mito-poético da obra, evidenciando o ciclo reconstruindo o segundo parágrafo sob a nova perspectiva de Otília.

“Ele”, mesmo sem nome recebe a incumbência do desfecho do conto. Em um desespero causado pela incomunicabilidade da amada se desespera e também “em doce fúria” crava os dentes no ombro dela. Em seu branco e puro ombro. Seus dentes só começam a ouvir “a cadência suavíssima do pulsar do som da amada” quando ele consegue a alcançar em toda a sua profundidade.

Se encerra o conto, com um desfecho apontando para o aprofundamento no insondável para que haja alguma chance de completude na comunicabilidade. Deixa fortemente a necessidade da comunicação, da transmissão da experiencia. Não bastando o amor por si só mas seu compartilhamento profundo e completo. Como Benjamin explica ao dizer que para a transmissão da experiencia se faz necessário um distanciamento, um aprofundamento.

No conto de Marina Colasanti tal distanciamento se dá pelo aprofundamento dos dentes sob a carne e o pinho, para além da superfície penetrando e alcançando o cerne onde o indizível é comunicado independente da surdez e da mudez do ser humano que não mais consegue se comunicar. Colasanti, de ascendência e formação italiana compartilha com Calvino de tal solução para a incomunicabilidade e a perda da arte de narrar da qual Benjamin alerta no início do século vinte.

Tal incomunicabilidade, tal deficiência ficam bem claras no soneto de Florbela Espanca. Onde a voz lírica só enxerga a beleza na paixão que o amado tem por sua paixão e no próprio amado. Não se comunicam, não são unos em seu discurso. Dispares em suas paixões e desejos. Presos e incomunicáveis, sem qualquer solução possível pois aceitam e compartilham de um contentamento descontinuo e díspar como fica bem explícito nos tercetos finais:

“Eu olhava para ti... “É lindo! Ideal!”
Gemeram nossas vozes confundidas.
- Havia rosas cor-de-rosa aos molhos –

Falavas de Liszt e eu... da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos...”


A voz se contenta com a incomunicabilidade irresoluta de seu tempo, com a impossibilidade de se compartilhar e narrar a própria experiencia e faz disso uma beleza trágica e completa. O Soneto de Florbela traduz magistralmente o sentimento que Benjamin tinha ao encarar sua sociedade européia no pós primeira guerra mundial. Contemporâneos, mesmo que desconhecidos entre si, capitaram bem o espírito de sua época: Ele discorrendo sobre tal em sua filosofia estética e ela se primando na poética clássica e tornando tal incomunicabilidade uma obra de arte.

ANEXOS

Concerto de silêncio, para duas vozes
Marina Colasanti

Surda era Otília.

Não ouvia as palavras de amor que ele dizia. Não ouvia as músicas de amor que ele cantava.

Deslizava os dedos sobre a boca do amado. E nada. Encostava o ouvido no violão. E nada. Nem som nem vibração chegavam até Otília.

Trancada no silêncio, sofria sem encontrar saída. Até que um dia, tomada de doce fúria,
cravou os dentes no pinho que ele dedilhava. E penetrando pelos dentes, fluindo pelos
ossos, infiltrando-se debaixo da pele, o som varou enfim, ofuscante, a cabeça de Otília.

Surda, porém, Otília não falava.

Não dizia do amor. Não dizia das músicas que agora lhe chegavam.

Afastado pela mudez, sofria ele em busca de saída. Que encontrou ao cravar os dentes, em
doce fúria, no branco ombro de Otília. Percorrendo os dentes, deslizando pelos ossos,
impregnando toda a pele, ouviu a cadência suavíssima pulsar do som da amada, que enfim
lhe chegava.

Tarde De Música
Florbela Espanca

Só Schumann, meu Amor! Serenidade…
Não assustes os sonhos…Ah! não varras
As quimeras…Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade…

Liszt, agora o brilhante; o piano arde…
Beijos alados…ecos de fanfarras…
Pétalas dos teus dedos feitos garras…
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!

Eu olhava para ti…”é lindo! Ideal!”
Gemeram nossas vozes confundidas.
– Havia rosas cor-de-rosa aos molhos —

Falavas de Liszt e eu…da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos…

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Análise Filosófica do conto “Três Sonhos” do livro: “O Senhor Calvino” de Gonçalo M. Tavares


(clique na imagem para ver o conto legível)


Os três sonhos de Calvino formam um conjunto de representações de distintos momentos da vida do personagem. São todos sonhos centrados em seu único personagem nominado: Calvino. Não sendo somente o personagem principal, mas também o centro da perspectiva e de onde sai toda a percepção e relação com o ambiente que o cerca, assim sendo, se altera totalmente tal percepção, conforme Calvino muda sua consciência.

No primeiro conto vemos um Calvino obstinado e perseguidor dos seus objetivos. Encarando seus reveses "sem pensar", ou seja, sem hesitação e com uma certeza de quem está seguro de seus atos. Jogando-se frente uma situação aparentemente absurda que lhe foi imposta com maestria e firmeza. Calvino joga-se pela janela, trinta andares acima do solo, pois através dela foram jogados os objetos constituintes de sua personalidade, seus símbolos de poder. Para Calvino, os sapatos e gravata bem alinhados equivaleriam à capa e espada bem cuidadas de um mosqueteiro ou o chapéu e revólver de um Cowboy no Velho Oeste. São o que o torna preparado para enfrentar seu destino. Mas não se trata apenas de vestir seus trajes, Calvino o faz com maestria e obstinação. Seu nó é um nó de dedos certeiros. Mesmo falhando ao calçar o pé esquerdo, não desiste, e antes de chegar já tem os sapatos com os atacadores bem apertados. Ao fim de sua jornada Calvino chega impecável, realizado.

Com a mesma presteza Calvino age ao se deparar com a Borboleta. Em grego, Borboleta é Psyche, que também significa alma, sendo usada desde muito como símbolo para libertação, transcendência e transmutação. Calvino reconhece nela algo de precioso e por isso mesmo se apressa em fechar a janela para não deixá-la escapar. Da mesma forma com que nos concentramos mais quando um lampejo nos indica o caminho para a resposta de um problema que há muito nos atormenta. Calvino acompanha o vôo da borboleta, observando-a de longe, observando-a tocar seus diferentes desejos e problemas: de seu desejo pela mulher de minissaia, de seu mundano interesse pelos números (números estes que aparecerão mais fortemente no terceiro sonho) e por fim chegando perto do bife cru, da carne que ele espanta com veemência, como se tal pudesse macular a Borboleta-Alma.

Seus esforços são recompensados e a Borboleta adentra por sua orelha esquerda. Sim, pelo lado esquerdo de seu corpo, conhecido pela ciência moderna como o lado responsável pelas sensações e emoções e antigamente associado ao mistério, místico e sinistro. Quando essa alma, que tanto perseguiu, se une à de Calvino ele se sente completo, íntegro e saciado. Com todas as respostas aos seus questionamentos, já pensado, resolvido e realizado. Depois de tamanha perseguição, de passar por provações, finalmente encontrara seu momento derradeiro. Calvino encontrara seu momento de êxtase, seu instante de maior felicidade. Mas desperta por não dar conta de tamanha completude e felicidade que a revelação da verdade proporcionava. No entanto, resta-lhe uma dor de cabeça que não passa como se não passasse para lembrá-lo do que vivera.

Diferentemente dos dois sonhos anteriores, Calvino começa esse de fora da situação que ele mesmo se encontrava, custando a perceber que falavam de números, percentagens da venda de petróleo. A sensação ruim que existia no final do segundo conto persiste, transformada agora na estranheza da sensação de estar dentro do estômago de uma Baleia. Pela primeira vez Calvino começa a se dar conta do mundo, percebe com estranheza como todos falavam de percentagens e percebe como ele, mesmo depois de se afastar da discussão com seu sócio, não conseguiu se desvencilhar desses números. Esse terceiro sonho é um despertar propiciado pela Borboleta. Depois do segundo sonho Calvino percebe a pressa, os números e todo o sistema da cidade dentro dessa grande Baleia.

Os três sonhos mostram momentos distintos da vida de Calvino sendo o primeiro seu quotidiano, o segundo seu rompimento e o terceiro seu novo dia com os questionamentos suscitados pelo rompimento. Calvino sai do primeiro sonho realizado ao conseguir seus objetivos, chega impecável ao chão, preparado para sua labuta diária. Já no segundo, apesar de sua realização ser incrivelmente maior, termina com o mal estar de não ter dado conta de tal. E por fim chega o terceiro conto, onde a revelação se depara com seu quotidiano e o faz perceber o que lhe causa náusea. Os três sonhos juntos formam o conto, a sua evolução pessoal. Não podendo ser lidos isoladamente, mas sim, como um conjunto de instantes particulares e interdependentes.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Ensaio sobre o caráter estético do erro.

“Prazer de sentir o dedo,
no buraco da meia furada...
Surpresa em ter reparado,
na minha unha mal cortada!”

(Detalhes, Lucas C. Lisboa)

Uma reflexão a respeito da metafísica do nada em sua relação com o trabalho de estruturação de idéias expressas e seu poder de fascinação.

Durante uma aula de Antropologia Filosófica, meu professor, em sua explanação a respeito da metafísica e ontologia em sua evolução e diálogo entre Hegel, Shopenhauer, Nietzche e Heidegger, contou uma metáfora (em minha interpretação evidentemente):

A rede de pesca é composta tanto por suas linhas quanto por seus espaços vazios. Quando seus espaços vazios são grandes por demais (ou há uma falha em seu padrão) deixa vazar o pescado almejado.

Mas, se por outro lado, se não houver espaços vazios, não há braços que tenham força para trazê-la de volta ao barco e mesmo se houver, sem os espaços vazios, não há seleção do que é pescado, trazendo toda a sorte de coisas indistintamente: pedras, peixes, ostras, água...

Traçando um paralelo: O mesmo ocorre com uma estrutura de pensamento, obra literária, teses filosóficas e congêneres (que chamarei a partir de agora simplesmente de obra). Julgo que preencher todas as lacunas não é desejável e, creio eu, até mesmo impossível.

O não-dito é necessário e vital para sua efetividade e interpretatividade. O Poder de impacto de uma obra não está só em sua coerência e concisão, mas também em seus aspectos de prolixidade e contradição.

Não obstante, uma justa medida, entre o ordenamento e a imprecisão também não é algo a ser tão almejado assim. O que importa essencialmente ao dito é sua capacidade de pescar o interlocutor e fazê-lo pensar, digredir, em cada acerto, mas também em cada erro presente ali.

As congruências e validades de um texto decerto que permitem que se interesse por ele, mas, por não poucas vezes, são seus paradoxos e incongruências que causam o fascínio e a paixão por uma obra. E, sem sombra de dúvida, não é o mero interesse que faz alguém se debruçar sob uma obra para desvendá-la e sim a paixão despertada.