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Lucas de Castro Lisboa, que adotou o nome artístico de Castro Lisboa e a persona pública de "poeta sobre trilhos", é um poeta, edi...

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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Análise: O Poeta é a mãe das armas de Torquato Neto

O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral — alô, poetas: poesia no país do carnaval; alô, malucos: poesia não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria. O Poeta é a mãe das Artes & das armas em geral: quem não inventa as maneiras do corte no carnaval (alô, malucos), é traidor da poesia: não vale nada, lodal. A poesia é o pai da ar timanha de sempre: quent ura no forno quente do lado de cá, no lar das coisas malditíssimas; alô poetas: poesia! poesia poesia poesia poesia! O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira | | | | | | | | | | | | | | = sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar. Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a r: em primeiríssimo, o lugar. poetemos pois. torquato neto/8/11/71/&sempre.

                           


O poema sem título iniciado pelo verso O Poeta é a mãe das armas, de Torquato Neto, escrito em 1971, apresenta-se como um exercício de experimentação formal e crítica cultural que combina recursos métricos tradicionais com rupturas radicais de ritmo, sintaxe e visualidade. Situado no contexto da poesia marginal e da contracultura dos anos 1970, o texto articula gesto lírico e dimensão política, tensionando a figura do poeta entre consagração e esvaziamento, entre a função de “mãe das armas e das Artes” e a condição de “maluco” sem lugar na estação fria de seu tempo. A análise que segue procura examinar de modo detido como as estrofes do poema operam no ritmo, no fôlego impresso em cada verso, no paralelismo semântico, na fragmentação gráfica e no jogo de vozes para construir esse campo de contradições, onde a poesia aparece tanto como arma quanto como desarme, tanto como sobrevivência quanto como risco de aniquilação. 



A primeira estrofe do poema é uma septilha cuja métrica alterna versos heptassílabos ( nos versos 2, 4, 6 e 7)  e octossílabos ( nos versos 1, 3 e 5.) O verso inaugural define o papel do poeta como “a mãe das armas”, em tensão com o segundo verso, que acrescenta “& das artes em geral —”. Essa estrutura poética privilegia o estranhamento e o inusitado. “O Poeta” é aqui mencionado com artigo definido e inicial maiúscula, transformando-se não em mera designação de ofício ou atividade, mas em entidade masculina que é mãe das “armas” (substantivo comum) e das “Artes” (substantivo próprio). A locução “em geral”, ao mesmo tempo, contradiz a personificação das “Artes” e ajusta-se ao sentido concreto de “armas” do verso anterior. O segundo verso termina com um travessão que, embora deslocado de sua posição habitual, anuncia a fala seguinte como a de uma outra voz do sujeito lírico. Já os versos 3 e 5 iniciam-se pela mesma interjeição de chamamento  “alô,”  e estabelecem um paralelismo entre poetas e malucos, ambos convocados pela mesma ordem após os dois pontos para concluírem em “poesia”. Além desse paralelismo semântico, há também um paralelismo rítmico: ambos os versos são octossílabos e seguidos por versos em redondilha maior (heptassílabos).
Há, portanto, um conjunto de pares de versos que alternam um verso de oito sílabas seguido por um de sete. A sequência desses três pares cria a expectativa de um quarto, mas a estrofe encerra-se no sétimo verso, aquele que, a princípio, deveria ser o oitavo, para que o equilíbrio entre os versos de 8 e 7 sílabas se mantivesse. A ausência desse último verso pode ser compreendida como um jogo poético que se destaca pela aproximação semântica entre o verso 6 e a execução do verso 7. O sexto verso “não tem nada a ver com os versos” alude à própria estrutura anterior de pares, que será rompida com o próximo verso. Este, ao não obedecer o padrão métrico previamente estabelecido, encerra abruptamente a estrofe, sem o oitavo verso que completaria o quarto par. No sétimo verso, observa-se ainda o uso de “muito fria” no lugar do coloquial “tão fria”, escolha que explicita a intenção do autor em preservar um esquema métrico determinado.

Nesta estrofe, há uma evocação aos poetas (ou malucos) para que se reconheçam como portadores de uma arma: a poesia. É a partir dela que poderão construir todas as Artes em geral. Há, porém, um alerta: ser poeta, fazer poesia, não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria. A época em que vivem exige armas; por isso, os poetas precisam ser convocados, chamados a essa tarefa, mesmo que sejam tomados por loucos nesta estação tão fria.

A segunda estrofe remete-se à primeira ao iniciar o verso 1 da mesma maneira da primeira estrofe mas inverte a ordem “das Artes” e “das armas” criando uma sensação de estranha familiaridade entre os versos e surpreendendo ao final do segundo verso ao substituir o travessão pelos dois pontos modificando o papel semântico do primeiro par de versos de cada uma das estrofes apesar de seu paralelismo formal.  Nesta estrofe os primeiros versos atuam como uma autoridade estética que diz “quem não inventa as maneiras do corte no carnaval”. E aqui o sujeito lírico ilude o espectador ao manter o primeiro par de versos dentro do esquema de oito sílabas no primeiro verso e 7 sílabas no segundo para então encadear dois versos em redondilha em seguida para então retornar ao verso 5 com 8 sílabas que faz um paralelismo com os versos 3 e 5 da estrofe anterior porém, aqui, o “(alô, malucos)” aparece entre parêntesis, marcando assim um sussurro, um texto dito escondido como quem delata a traição que por sua vez tensiona com “da poesia” da estrofe subsequente que conclui o raciocínio que quem não inventa as maneiras do corte no carnaval, é traidor da poesia: não vale nada, é um lodal.  Este último verso dessa estrofe em sextilha surpreende novamente por seu ritmo em hendecassílabo. Tal recurso condensa a taxação de não valer nada, de ser um lodal no verso mais veloz da estrofe como se fosse dito nervosamente, rapidamente o conteúdo mais belicoso. 

A alternância entre a repetição e a inversão dos elementos das duas estrofes revela um jogo de espelhos que estrutura o poema: o mesmo gesto poético que funda o discurso, a criação, é também o que o nega, ao denunciar o risco da estagnação estética. O sujeito lírico, ao repetir e distorcer a forma, encena a própria tensão entre tradição e invenção, entre a ordem e o corte. O verso hendecassilábico final atua como o ápice dessa tensão, quebrando o padrão e introduzindo um ritmo de urgência que confere performatividade à crítica, o poema não apenas diz o que é ser traidor da poesia, mas demonstra, em sua métrica e sonoridade, a necessidade de reinventar o próprio ato poético.


A terceira estrofe é o ponto de maior ruptura do poema,  ruptura esta anunciada no último verso da segunda estrofe. Interessante notar que tal ruptura ocorre em termos formais e semânticos pois ambas são, ao longo do poema, imiscuídas mutuamente.   Aqui, na terceira estrofe, se seguem 4 versos cadenciados em redondilha, porém a cadência rítmica que formaria uma quadra clássica é transgredida pela partição das palavras em versos distintos criando tensões semânticas por meio da métrica regular que não obedece sequer a ortografia de divisão silábica demonstrando a independência do poeta das normas da gramática e da poética. Tal independência não significa de modo algum desconhecimento ou desprezo pelas mesmas, há aqui um diálogo intencional com a regra gramatical e com a tradição poética, o poema é construído de tal maneira que cada verso é um jogo linguístico no qual tradição e modernidade são tensionadas causando efeitos estéticos únicos justamente por essa alternância que cria ritimicidades próprias e inovadoras, aqui o metro é medido, contado e escandido não em favor de uma isometria, mas de uma polissemia provocada pela quebra e alternância de ritmos em momentos chaves do poema. 

O primeiro verso da estrofe “A poesia é o pai da ar” deixa-se suspenso no ar numa artimanha que o sujeito lírico continua no verso seguinte “timanha de sempre: quent” que também não se completa sem o verso “ura no forno quente” que tem uma rima criada pelo capricho estético que demonstra seu domínio da versificação ao realizar uma segunda rima dessa vez com o primeiro verso da estrofe e seu último “do lado de cá, no lar” Essa falsa trova incluída numa estrofe maior tem seu sentido completado apenas no verso seguinte, o que quebra expectativa gerada pelos quatro versos em redondilha, assim como o próprio poema quebra as palavras em lugares inesperados. A métrica neste poema atua como um duplo da aplicação gramatical e da própria semântica da mensagem transmitida. 

O verso 5 diminui o ritmo para 6 sílabas para depois retornar ao paralelismo no verso 6 e novamente dizer “alô, poetas: poesia!” remetendo ao terceiro verso da primeira estrofe, mas agora com uma exclamação que evoca a urgência do momento, uma exaltação do cerne de ação que o poema atribui ao poeta, o de ser o arauto da poesia. 

Já o sétimo verso traz um ritmo ainda mais intenso ao se encaixar em um dodecassílabo alexandrino com uma cesura em sua sexta sílaba. O veloz verso “poesia poesia poesia poesia!” é marcado por uma tomada de fôlego entre um hemistíquio e outro. Tal tomada de fôlego, necessária nos versos longos demonstra como o ritmo ao longo dos versos atuam como reforçador semântico guiando a voz do poema como a partitura guia o ritmo de uma música.

O verso seguinte um pouco mais lento, um eneassílabo, parece evocar o verso inicial do poema com seu artigo em maiúsculo porém no lugar de uma afirmação enaltecedora do Poeta traz uma reflexão acerca do poeta que prossegue em enjambement pelos próximos versos em um ritmo que segue por alexandrino, um decassílabo e um verso que é constituído por uma redondilha seguida por uma pausa rítmica de igual tamanho como se o sujeito lírico pegasse fôlego para o verso seguinte composto pela velocidade de 14 sílabas que se emenda então num ritmo mais rápido ainda:  “O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” é a mensagem em prosa desses versos? Não, pois ao dizê-los assim esvai as tensões criadas pela estrutura ritmica dos versos em questão.

 O verso 8 “O poeta não se cuida ao ponto” pausa o sentido exatamente no termo ponto, cria uma polissemia entre os significados possíveis do termo ponto, indo de localidade até o seu sentido de sinal gramatical de fim de uma oração. O verso 9 “de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo” tem como núcleo central a palavra “quem” ela é a rima do último hemistíquio deste alexandrino, o que força seu sentido semântico para o centro da atenção e da tensão do verso criando aí uma evocação do perigo desse quem, figura capaz de cortar a bandeira do poeta nesta estação muito fria como dito no verso 10, verso este que reforça em capitular o MINHA trazendo uma tensão a este poeta substantivo comum que é distinto daquele Poeta metafísico das primeiras estrofes. 

Este verso 10 também usa o recurso gráfico da “|” para  evocar a duração da pausa maior entre versos garantindo aqui que seu tempo total seja equivalente ao verso seguinte, o 11º verso “sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” que possuí seu ritmo veloz em 14 sílabas com um hemistíquio que divide o verso em 2 partes, ambas iniciadas com a palavra “sem”numa rima interna com o “quem” do verso 9 alinhando assim o causador “quem” do corte com o resultado “sem” criando uma aproximação semântica de um quem sem aura, baúra ou nada mais para contar. 

O verso 12 aqui transgride ainda mais a velocidade do poema acelerando-a a 18 sílabas em um único verso  “Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a” cuja fala num só fôlego é transmitida pela ausência do r de ar tal qual a própria falta de ar causaria, assim a prescrição da métrica do verso causa na fala do mesmo o efeito que é emulado em seu registro escrito. E o verso 13 “r: em primeiríssimo, o lugar.” com suas 9 sílabas, metade do verso anterior,  termina o anterior justamente como alguém que recupera o fôlego no meio da frase e completa a mesma de maneira entrecortada, sua duração em eneassílabo também indica uma pausa de fôlego após seu fim, um respiro do verso anterior que levou a capacidade pulmonar do leitor em suas últimas forças.

Em suma essa terceira estrofe funciona como uma síntese e uma catarse do poema: a forma se confunde com o próprio ato de respirar, e a métrica torna-se corpo, respiração e sentido. A progressiva aceleração rítmica até o colapso da fala (e sua consequente retomada do fôlego) traduz, em gesto poético, o limite entre criação e exaustão, entre dizer e silenciar. O poema, ao final, se converte em uma experiência fisiológica da linguagem, em que o verso não apenas comunica, mas encarna o próprio esforço da poesia para continuar existindo em meio ao asfixiamento do mundo. O “r” final, que fecha o ciclo, devolve ao leitor o ar que faltava, reconstituindo, no som e no ritmo, a presença vital da palavra poética  aquela que sobrevive mesmo quando parece já não haver mais fôlego algum.

A penúltima estrofe de um único verso reduz drasticamente o ritmo do poema e “poetemos pois.” termina como uma redondilha menor dotada de ponto final. É um verso curto, de leitura lenta como quem conclui uma maratona poética, um texto que se acelera do início ao fim com alternâncias de ritmos como são os percalços da vida poética e termina de maneira compassada, na menor unidade silábica da poesia popular brasileira. E como virtuose final torquato neto assina em mais um verso de 18 sílabas seu nome, data “&sempre”.  Que escrito em letra minúscula com uma métrica deliberadamente extensa e do exato mesmo tamanho do verso 12 da estrofe 3 se transforma em não só assinatura, mas também em um verso do próprio poema. 

Este  poema de Torquato Neto evidencia como a poesia pode simultaneamente convocar e desestabilizar, armar e desarmar, instituir e dissolver sentidos. A oscilação entre regularidade métrica e ruptura, entre o chamado enfático (“alô, poetas”) e a ironia corrosiva (“não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria”), encena a própria precariedade do lugar do poeta em tempos de repressão e desencanto. Mais do que um exercício técnico, a variação de ritmos e formas converte-se em um gesto político e estético: afirmar a potência da poesia ao mesmo tempo em que se denuncia sua fragilidade. Nesse movimento, Torquato constrói uma poética que não busca apenas sustentar tradições, mas expor o risco, o improviso e a urgência de dizer em meio ao silêncio imposto e é justamente nessa tensão que sua voz se perpetua.


sexta-feira, 15 de julho de 2022

Análise da Canção Ouro de Tolo de Raul Seixas


 Raul dos Santos Seixas, cantor e compositor baiano, nascido no ano da bomba atômica se definia como um canceriano sem lar. Era pois, um cronista ambíguo e contraditório em muitas de suas composições que aqui analisaremos sob a perspectiva econômica de sua época, O Brasil da Ditadura Civil-Militar ocorrida a partir do ano de 1964 cujo próprio término em distensão lenta e gradual Raul como seus espírito de mosca na sopa duvidava quiçá só para incomodar, quiçá para apontar ali uma ferida, um incômodo que seria mais conveniente ignorar.

O caráter monetário, concreto da natureza de seus versos  acontece desde o título de sua canção “Ouro de Tolo” do álbum Krig-ha, Bandolo! lançado no ano de 1973 durante o chamado Milagre econômico brasileiro período propagandeado pela Ditadura como de enorme pujança e prosperidade para o país.  Mas o Eu-lírico do autor inicia seu canto dizendo que:

“Eu devia estar contente

Porque eu tenho um emprego

Sou o dito cidadão respeitável

E ganho quatro mil cruzeiros por mês”


O devir, o dever ser inaugura o poema contestando a ética protestante da realização pelo trabalho, pois põe em cheque a certeza que o indivíduo respeitável por ter um emprego e uma renda, tenha em situação de alteridade a sua auto realização.  Na estrofe subsequente:


“Eu devia agradecer ao Senhor

Por ter tido sucesso na vida como artista

Eu devia estar feliz

Porque consegui comprar um Corcel 73”


O elemento religioso se impõe novamente e a realização da rima entre o mês e o sententa e três novamente demonstram como valores de realização primeiro o salário nominativo e em seguida um carro novo, do ano do lançamento do álbum denotando um sucesso financeiro que deveria ser garantidor do seu próprio contentamento e se esse devir não se realiza, se o eu-lírico não canta seu agradecimento, há uma dissincronia entre a expectativa capitalista de realização e o próprio anseio humano.


“Eu devia estar alegre e satisfeito

Por morar em Ipanema

Depois de ter passado fome por dois anos

Aqui na Cidade Maravilhosa”


Nesta estrofe impera novamente o devir e o incomodamento do eu-lírico se expande para um dos bairros símbolos do crescimento nesse período de um novo Rio de Janeiro, bem distinto daquele Rio antigo das crônicas do bruxo do Cosme Velho. Se Laranjeiras, Glória, Botafogo, Lapa, Flamengo são o pano de fundo das narrativas machadianas por serem os espaços frequentados pela elite carioca de sua época. Aqui, na obra de Raul seixas, Copacabana, Ipanema e Leblon assumem esse papel em um Rio de Janeiro que não é mais capital do Império ou da República, mas que mantém-se ainda como a meca dos artistas, para qual todos que querem colonizar seu espaço no mundo das artes devem migrar. E mesmo após passar fome por dois anos na Cidade Maravilhosa, o sucesso não basta para extinguir a alteridade do devir do eu-lírico. E o que era apenas devir se afirma como negativa nas duas quadras a seguir:

“Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso

Por ter finalmente vencido na vida

Mas eu acho isso uma grande piada

E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente

Por ter conseguido tudo o que eu quis

Mas confesso, abestalhado

Que eu estou decepcionado”

A vinculação da felicidade ao sucesso financeiro apregoado pela ética capitalista é, para o eu-lírico uma piada, e pior, uma piada perigosa. Pois, apesar de ter conseguido tudo que quis é com espanto que ele se percebe decepcionado com essa promessa.  a partir dessas estrofes a uma mudança no tom dos versos pois o artista decepcionado deixa de apenas narrar o seu devir para lançar outras dúvidas e explicitar diretamente o seu sentimento de falta, onde as recompensas e realizações ofertados pela sociedade capitalista não  são o bastante para que ele se sinta pleno.

“Porque foi tão fácil conseguir

E agora eu me pergunto: E daí?

Eu tenho uma porção

De coisas grandes pra conquistar

E eu não posso ficar aí parado”


Neste momento de virada da canção, quando o compositor troca as quadras por uma sextilha vemos um eu-lírico que abraça a incongruência, o contraditório que não cabem no estreito espaço ético da sociedade brasileira que sob o milagre econômico que ao mesmo tempo oferecia carros do ano para o artista, que relembra a fome na Cidade Maravilhosa, mesma fome que matou mais de meio milhão de pessoas do mesmo pais na Grande Seca de 1970. E o questionamento “e dai?” remete ao imponderável, o abstrato que não cabe em 4 mil cruzeiros por mês, que não se concretiza em um corcel 73 e nem se negocia com vencer a fome tão distante de suas própria terra. E assim, esse eu-lírico se distancia daqueles protestantes weberianos que vão ao novo mundo fundar o capitalismo através da ética do trabalho.

“Eu devia estar feliz pelo Senhor

Ter me concedido o domingo

Pra ir com a família no Jardim Zoológico

Dar pipoca aos macacos

Ah! Mas que sujeito chato sou eu

Que não acha nada engraçado

Macaco, praia, carro, jornal, tobogã

Eu acho tudo isso um saco”


Após a sextilha o compositor retorna ao esquema de quadras e enquanto nas quadras iniciais o eu-lírico aparecia em um questionamento do seu devir, no que devia ser mas não se realizava, sem contudo, expressar seu contentamento, neste par de quadras vemos  a tensão da primeira quadra ser resolvida na segunda. O devir da primeira é negado em seguida. e retoma os elementos das quadras anteriores quando do terceiro verso da segunda estrofe. Pois nem os macacos do Jardim Zoológico, nem a praia de Ipanema e muito menos seu corcel 73 aliviam o vazio que não se preenche com as recompensas por ser “um dito cidadão respeitável”

“É você olhar no espelho

Se sentir um grandessíssimo idiota

Saber que é humano, ridículo, limitado

Que só usa 10% de sua cabeça animal


E você ainda acredita

Que é um doutor, padre ou policial

Que está contribuindo com sua parte

Para o nosso belo quadro social”


Pela primeira vez o eu-lírico se dirige para o interlocutor, despejando seu próprio descontentamento no outro que vê como um espelho, como também pertencente ao “nosso belo quadro social”  Elenca àquelas profissões fundamentais nessa estrutura, ao mesmo tempo que os lembra que são animais, seres limitados e que a despeito das conquistas, das contribuições ainda permanecem carentes de significação, de objetivos maiores que só se realizam dentro das expectativas limitadas e limitantes dessa sociedade.  E tal processo acaba por  guiar o interlocutor para o fechamento da canção.

 

“Eu é que não me sento

No trono de um apartamento

Com a boca escancarada, cheia de dentes

Esperando a morte chegar


Porque longe das cercas embandeiradas

Que separam quintais

No cume calmo do meu olho que vê

Assenta a sombra sonora dum disco voador”


Para se distinguir dos seu interlocutor o eu-lírico nega a posição do dia de domingo, de ser mero espectador de sua vida conquistada, de suas próprias pequenas e burguesas realizações, refere-se a “um apartamento” de maneira indefinida pois a vida de seu habitante é igual e genérica como a de tantos outros habitantes, cidadãos respeitáveis que dormem em seus sofás de boca aberta sem mais expectativas, sem sonhos de mudanças. Mas em sua última quadra o eu-lírico canta acerca do imponderável, de um lugar longe do sonho burguês de uma casa com cerca e quintal, tal qual um filme americano. Fala daquilo que está na margem da visão, em seu ponto mais calmo, uma sombra sonora, uma sinestesia que torna o extraterreno a solução para quando a realização protestante da redenção pelo trabalho oferece apenas o material mas não desfaz o mal-estar existencial. 

Sob a égide de um Milagre econômico que só satisfaz uma pequena classe média, o Brasil de 1973, tem fome, tem miséria, tem tortura e opressão que não são maquiados pelos números econômicos, que a ficção monetária não consegue ser verossímil para quem já passou fome. Em uma canção onde os elementos autobiográficos ressoam temos um migrante nordestino percebendo que a promessa de prosperidade é falseada e falseável. Que não há bilhete premiado que garanta a felicidade além das recompensas ofertadas para o bom trabalhador. 


terça-feira, 3 de abril de 2012

Analise literária do poema: Também já fui Brasileiro de Carlos Drummond de Andrade


Lucas C. Lisboa

Eu também já fui brasileiro 
moreno como vocês. 
Ponteei viola, guiei forde 
e aprendi na mesa dos bares 
que o nacionalismo é uma virtude. 
Mas há uma hora em que os bares se fecham 
e todas as virtudes se negam.


Nos dois primeiros versos do poema o poeta mostra seus laços com a brasilidade da missigenação que Gilberto Freyer tanto exalta em casa Grande e Senzala. O verso "moreno como vocês" uma redondilha menor enlaça o ritmo típico dos cantores populares e anuncia a entrada do próximo onde se aproxima ainda mais do brasileiro típico tocador de viola e em seguida recusa a grafia da marca americana "Ford" para pronunciá-la em sua forma abrasileirada "forde. 

Em um clima de viola e fala popular entra em cena a mesa de bar, espaço que é praticamente a maior escola dos trópicos, onde todos os problemas são resolvidos com souluções geniais e simples. É o espaço natural dos poetas, artistas e cantores, aqui no brasil nada de cafés para se estabelecer o diálogo com o belo ou a verdade. No Bar brasileiro, surge um mundo de fantasia um mundo onde o poeta diz que aprendeu que o nacionalismo é uma virtude. Mas essa virtude, critica, se acaba pois a fantasia tem hora para acabar quando o garçom recolhe as mesas.

Eu também já fui poeta. 
Bastava olhar para mulher, 
pensava logo nas estrelas 
e outros substantivos celestes. 
Mas eram tantas, o céu tamanho, 
minha poesia perturbou-se.

Nessa segunda estrofe o poeta se distancia das escolas anteriores tratando-as como meras repetidoras de romantismos feitos, metáforas vazias sobre astros celestes. Entre a infinitude do céu e a vagueza do desgaste o poeta sente que não faz mais sentido trabalhar, expressar seus anseios e galanteios nos termos do passado pois já não possuem mais o mesmo peso ou força encantatória. Uma poesia pertubada exige novas musas, novas palavras e poeta recusa o passado em prol do novo ainda a construir.

Eu/ tam/bém/ já/ ti/ve/ meu/ ritmo. - 8 silabas
Fa/zi/a i/sso, di/zi/a a/quilo. - 8 silabas
E/ meus/ a/mi/gos/ me/ que/riam, - 8 silabas
meus/ i/ni/mi/gos/ me o/di/avam. - 8 silabas
Eu/ i/rô/ni/co/ des/li/zava - 8 silabas
sa/tis/fei/to/ de/ ter/ meu/ ritmo. - 8 silabas
Mas/ a/ca/bei/ con/fun/din/do/ tudo. - 9 silabas
Ho/je/ não/ des/li/zo/ mais/ não, - 8 silabas
não/ sou/ i/rô/ni/co mais/ não, - 8 silabas
não/ te/nho/ ri/t/mo/ mais/ não. - 8 silabas

Contrariando a expectativa dos versos livres das estrofes anteriores o poeta ao anunciar que já teve seu ritmo começa a versejar em versos octossílabos. Tal estrutura ritmica não foi das mais populares na poesia dos séculos anteriores quando comparada aos versos em redondilha, decassílabos ou alexandrinos. Porém possui sim sua própria melodia e ritmo bem marcados.

O poeta narra seu próprio fazer poético como provocante, causador de desejos e aversões por sua habilidade poética mas num verso "Mas/ a/ca/bei/ con/fun/din/do/ tudo."  ele perde inclusive o ritmo cunhado nos versos anteriores ao fazê-lo um eneassílabo. Justamente onde o eu lírico diz ter "confundindo tudo" o poeta imprime ali um ritmo diferente o que demonstra imediatamente o caráter ambíguo da crítica aos poetas escrevedores de poemas sobre estrelas e suas técnicas pois aqui Drummond faz seu uso para imprimir uma força rítmica que dialoga e acentua o conteúdo do próprio poema.  Nos versos seguintes o poeta retorna aos versos octossílabos e conclui o poema tão carregado de ironia e negação que fica difícil acreditar que ele não seja mais irônico ou dotado de ritmo.

Todo o poema é uma contradição, forte patente e criativa. O poeta renega a cada verso aquilo que mais substancialmente é: brasileiro e poeta. Ao dizer que não é aquilo que é de fato ele pretende se distanciar de certas posturas que lhe causam aversão entre brasileiros e poetas. 

terça-feira, 5 de julho de 2011

Análise Literária do Poema de Sete Faces de Carlos Drummond de Andrade

Lucas C. Lisboa

O “Poema de Sete faces” de Carlos Drummond de Andrade foi publicado pela primeira em seu primeiro livro “Alguma Poesia” de 1930. É um poema composto de sete estrofes, faces. Que mostram um aspecto da percepção de mundo do autor. Passeia por diversos temas como quem está em um bar vendo a vida passar e comentando do que vê, pensa e sente. É um poema em verso livre mas que possui uma unidade ritimica ditada pela cadência da oralidade. Tem em sua maioria versos brancos e a rima quando ocorre não é acidental ou formal mas um elemento acessório ao conteúdo. Trata-se de um exemplar de estilo típico de sua obra onde mistura muita oralidade a eruditismos pinçados em pontos estratégicos para o entendimento do texto.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Em sua primeira estrofe o poeta se insere no poema e declara-se parte de um mundo torto. Carlos insere-se no poema ao dar seu próprio nome ao eu-lírico. E declara-se parte de um mundo torto quando o próprio anjo declara que ele e Carlos estão fadados a terem o mesmo destino pois ele anjo torto o declara fadado a seguir o caminho "gauche" na vida. Gauche, que em francês é aquilo que não é direito, o esquerdo e, por extensão, aquilo que é torto. Tal anjo torto vive na sombra, um anjo que foge do calor do sol dos trópicos, um anjo que traz consigo o sentimento de que o jeito mais fácil, mais simples mais cômodo é melhor que o jeito direito. A primeira estrofe é uma face de identificação de Carlos Drummond de Andrade com seu mundo, com sua realidade e sua brasilidade.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

Ampliado sua visão para fora do seu eu Carlos, observa a cidade onde até as árvores são testemunhas dos desejos humanos e como esses desejos tão intensos conseguem por fim até mesmo ao azul do céu. Afinal, a tarde teria um céu azul se não fossem as ganancias e cobiças humanas que enegrecem o céu com suas fumas de cigarros e carros pois um homem para conquistar uma mulher precisa ostentar-se precisa sujar o mundo e fazer-se brilhar para que sua corrida não seja em vão.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

Para além dos desejos dos homens há a coletividade, há a massificação de pessoas, transporte em massa, gente que perambula de um lado para o outro, gente brasileira de pernas de todas as cores. O comentário do poeta "Para que tanta perna meu Deus" é ambiguo e pode ser interpretado num porquê tanta variedade de cores e de etinias mas também em um sentido mais forte no porque de tantas massas. Mas é o coração que julga, coração que tem medo, que tem receios que pensa e julga o outro. Os olhos preceptores da razão apenas analisam, não há dúvidas para o mundo mecanizado da razão pela qual os operários, os trabalhadores de um transporte coletivo precisam se desloacar como uma massa pelo bonde.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás do óculos e do bigode.

Dentro da massa de pessoas o poeta elege um homem, entre tantos que passeiam pela rua este elege os óculos e o bigode como sua máscara, sua marca para enfrentar o quotidiano. Uma máscara reservada e simples que garante sua integridade e distancia do mundo.

Meu Deus, porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Carlos reclama a um Deus relapso que permite que seus soldados vivam à sombra que também o abandonou sabendo que ele era como todos os outros um fraco, com defeitos um torto. Remete ao existencialismo que coloca o homem como um deus que defeca, como um ser que apesar de potencialmente poder alcançar as estrelas é também fadado aos defeitos e desventuras de ser imperfeito e de viver num mundo do contingente e não do necessário.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.

Em sua penúltima estrofe Carlos traz para o poema o meta-poema para discutir a solução de seu mundo gauche, de anjos tortos, sem Deus, de tantas pernas coloridas e também de outras tantas máscaras que se fazem rostos. A face que Drummond mostra nesse verso é uma face ambigua onde confessa a incapacidade da rima, ou seja por metonímia a própria poesia, de dar uma solução ao mundo. Mas depois busca sua solução para vastidão do mesmo mundo dizendo que com seu coração seria capaz de dar conta desse mundo.

A primeira questão que sucita dessa estrofe é quanto a capacidade desse coração que, como foi visto anteriormente, é fraco, tem medos e incertezas, cheio de dúvidas. A outra questão que soa mais relevante é a dada solução, numa rima paupérrima Carlos aproxima o sentido de solução e coração num flagrante contraditório com a incapacidade da rima de ser uma solução como posto pela conjectura a respeito de seu nome ser Raimundo. Tal contradição não se soluciona, o coração tão frágil é incapaz de abarcar todo mundo como Carlos propõe a primeira vista, pois sua relação com o próprio poema com sua própria justificativa é falha num processo lógico-poético onde a rima é posta ao nada para depois aparecer com solução. Pois o poeta cai em um ciclo vicioso quando nega a importância dela para depois subrepticiamente usá-la como solução. Não é para menos que o poeta se embriaga em sua última estrofe.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo

Carlos traz seu leitor nesse momento a uma intimidade de quem confidencia um segredo, como se estivessem numa mesa de bar tão típica das minas gerais. Evocando a lua e o álcool, os maiores patronos da poesia romântica, se despede do poema culpando seu coração por todos os seus desabafos e desvarios anteriores. Abraçando o diabo como quem abraça o amigo bêbado depois da última saideira do botequim termina seu poema. Sim, o poeta se declara num estado de comoção do diabo, intensa. Um diabo num mundo onde os anjos são tortos e vivem nas sombras, se até os anjos o condenam à ser mais um tão torto quanto eles Carlos encontra nessa comoção, nesse romantismo uma solução para o vasto mundo que pretende caber em seu coração.