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Poeta e apenas poeta

Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...

sábado, 29 de novembro de 2008

O Pianista (revisado)

Lucas C. Lisboa

Desde o dia que o pianista falhara em sua primeira exibição, frente toda a Corte; culpara, terrivelmente, sua mão direita. Afinal, fora ela que tropeçara, amargamente, frente ao público tão exigente.

Sua mão errara naquele momento crucial, transformando um Fá sustenido em um dissonante Sol natural. Ele soubera, imediatamente, que todos os ouvidos do ambiente haviam sido feridos. Mas, complacentes com sua inépcia, o aplaudiram em patente e jocosa cordialidade falseada.

Tudo culpa da sua maldita mão direita! Que até então sempre fora sua favorita, que tudo pegava, apalpava, escrevia e fazia. Não confiava mais nela; pois ela poderia novamente vacilar. Reaprendeu: a escrever, a escovar os cabelos, a fazer todas as suas necessidades, de abrir portas até atar e desatar os nós de seus sapatos.

Em toda a sua dor sentia-se inútil, o piano não poderia mais tocar, pois não poderia jamais perdoar aquela tratante; que tanto o decepcionou depois de tantos anos que lhe prestou prioridade, cuidados e carinhos. E como se sentia culpado por nunca ter dado um melhor préstimo à sua fiel mão esquerda; que mesmo relegada ao descrédito nunca havia deixado de cumprir com o seu dever.

Não podendo mais tocar; logo seria preterido, naquela competitiva corte do príncipe regente, caso não dominasse outra arte. Não tinha, porém nenhum dom para os pincéis ou para outros instrumentos: flauta, violino, violoncello; que não tinham a mesma imponência e importância do piano. Além de também serem todos dependentes da impossível reconciliação com sua pérfida e vil mão direita.

Mas havia a arte da esgrima; uma arte que até praticara em seus arroubos de juventude. Era, à época, apenas bom e não o melhor, sendo sempre vencido pelos movimentos imprevisíveis daquele canhoto de cabelos vermelhos. Pois assim, redimindo-se com sua honesta e correta mão esquerda, empunhou novamente o Florete que há tanto jazia empoeirando e com afinco tornou-o uma extensão de sua mão fiel e certeira.

Guardando a amarga lembrança das lutas com a mão direita, sabia, exatamente, onde o seu oponente estaria no próximo momento. Assim com sua habilidade rara venceu, após anos de prática dedicada, obstinada e decidida, inúmeros duelos e torneios em terras próximas e também em outras distantes, algumas até mesmo além-mar.

Com os seus novos sucessos teve o almejado reconhecimento e assim chegou novamente às honrarias da corte e ao exibir-se para sua Rainha e Rei colocava-se à posição clássica exibindo sua mão esquerda ao florete e escondendo em suas costas a indigna mão direita.

Naquela corte, depois de tantos anos passados, não mais se recordavam de sua face. Não reconheciam, naquele esgrimista hábil, o promissor pianista de outrora. Mas entre os tantos artistas daquela corte, de talentos tão diversos quanto fantásticos, havia uma compositora de Ópera , Violino e Piano que desde o primeiro instante o reconhecera.

Não por sua face agora séria e amadurecida, mas por sua bela mão que ele tão despropositadamente parecia querer ocultar. Sim, pois se havia algo que ela apreciava mais do que uma sonata bem composta ou uma peça grandiosa era a harmonia dos dedos, ossos e falanges de mãos belas e bem cuidadas. Tinha em seu quarto uma coleção delas bem guardadas, dentro de um baú reforçado e trancado, em seus respectivos potes embebidos ao rum.

A compositora, ao notar aquela mão escondida atrás do tal esgrimista, se perguntava o porque dela estar tão mal cuidada e tão distante da beleza que já tivera, revoltando-se com tal desleixo para com uma mão tão preciosa. Mas, não obstante a tal fascínio, estava curiosíssima para saber do porque do seu inexplicável desaparecimento, naqueles tempos onde Vossa Magestade ainda era Regente; afinal, sumira depois daquela inspiradora tarde de música, onde conduzira magistralmente suas mãos encantadas sobre o piano.

domingo, 9 de novembro de 2008

A Máquina

Lucas C. Lisboa Conforme as chaves giraram na maçaneta os estalos do metal ecoaram pela escadaria. Ao Chegar em seu apartamento, ele retirou seu chapéu e o seu casaco colocando-os sobre o manequim de olhos grandes e mãos solícitas. Seu cão o recebeu logo em seguida com ganidos e latidos pré-programados por anos e anos de evolução e labor. Seus dedos num estalo pediram as luzes para o ambiente e tudo se iluminou magicamente. Sua querida companheira das noites estava a sua espera contemplando-lhe o olhar. Era pela noite que realizava seu verdadeiro trabalho depois da rotina exaustiva e sufocante no centro da cidade. Todos os dias coletava um pedaço rachado daquela grande cidade. E o consertava com outros pedaços de outros fragmentos da grande e velha cidade. Não que os novos restaurados tivessem a mesma função que tiveram outrora mas ele se sentia muito bem de devolver a dignidade para aqueles prematuramente aposentados. E ria-se das propagandas da televisão que prometiam produtos maravilhosos. A sua frente tinha a mais perfeita máquina que lhe permitia possibilidades muito mais infinitas do que sequer sonharia aqueles sorrisos falsos e relatos mentirosos ditos na frente das câmeras. Ali sozinho eu seu apartamento, sem o olhar de ninguém, lera livros de "faça você mesmo", "Pequenos Reparos", "Mecânica de Automóveis", "Introdução à física" e "Química moderna". Com muito afinco estudou e aprendeu cada detalhe da arte do engenho. Aprendeu também, como as palavras tinham poder, com uma poetisa de não mais que dezesseis anos, para quem deu aulas de reforço de matemática. Escutara dela os nomes do parnaso, as vísceras do simbólico e até mesmo alguns segredos confessados pelo semitas. Seu propósito veio, no entanto, dos livros de sua ex-namorada, versada nos pincéis com uma queda para um misticismo e filosofia. Lhe contou da máquina imóvel, do grande engenho orquestrado pela exata concatenação dos eventos, da necessidade de ordem e também da Natureza decorando profundamente a citação "Deus sive Natura" do Bento tão querida por ela. Morava sozinho e ninguém visitava seu apartamento, não era de modo algum um exemplo de organização mas o que importava? Ambos se entendiam muito bem, ela ocupando os espaços com seu afã por crescimento e ele gentilmente podando-a aqui e ali conforme precisava alimentar a si e a sua máquina com sua própria produção ali armazenada. Por isso não se importou de escolher a sala de seu apartamento, no canto mais esquerdo e profundo, para ele montar sua máquina tão sonhada e elaborada por tantos anos de trabalho árduo. Estava muito satisfeito, conseguira ajustar todas as variáveis adicionando uma segunda fonte de alimentação para aquele motor. Seus rascunhos e ideias se casaram perfeitamente com toda a sortida colheita da cidade. Cada noite rendia pequenas preciosidades, pequenas partes de ordenação sobre tantas rachaduras. Cada uma com sua utilidade utilíssima que qualquer outro, exceto ele iria menosprezar logo no primeiro contato. E lá ficava ele trancado em seu próprio construir como zeloso carpinteiro do universo.