Um livro de poesia na gaveta não adianta nada
Lugar de poesia é na calçada
Sérgio Sampaio
Introdução
Pedro José Ferreira da Silva. Mais conhecido como Glauco Mattoso é, em seus próprios termos, poeta, ensaísta, ficcionista, pós-maldito, pornosiano, barrockista, deshumanista, anarchomasochista, pós-maldito. Figura fácil nos espaços de contracultura da cidade de São Paulo e também presente na letra da canção "Língua" de Caetano Veloso, tem uma extensa e profícua produção literária em formas e estilos diversos. Com romances-pastiche, como a Planta da Donzela, com o JORNAL DOBRABIL, com seus milhares, sim milhares, de sonetos, Glauco é uma figura emblemática da poesia contemporânea brasileira, desde os anos 60 até os dias atuais. A obra de Glauco Mattoso é um verdadeiro desafio para os estudiosos dos campos literários e artísticos, uma vez que abrange uma pluralidade estilística curiosa, indo da poesia visual à produção musical. Além disso, seus discursos transgressores, que abordam temáticas constrangedoras e linguagem obscena, tornam a análise de sua obra ainda mais complexa.
As produções de Mattoso, JORNAL DOBRABIL e Melopeia, são díspares no tempo e estilo, tendo, em comum, a cidade de São Paulo como seu espaço de criação. Em comum também há a variedade de temáticas e inspirações, indo da filosofia ao fescenino, do poema-piada ao poema-protesto, passando por ironias, galhofas, toda sorte de provocações que tornam sua poesia de sabor intenso e, às vezes, deliberadamente indigesta. Como recorte, podemos analisar sua transição de pseudônimos que, nas primeiras edições do JORNAL DOBRABIL, se apresenta como o assonante Pedro, o Podre, e caminha para a autoironia de Glauco Mattoso, em alusão ao glaucoma que lhe tirou a possibilidade da poesia concreta e lhe enviou aos braços de Gregório de Matos e seus sonetos cuja temática Glauco sempre louvou em suas próprias obras.
Os jornais DOBRABIL são um conjunto de obras lançadas pelo autor nos anos 70 do século XX. Nestes trabalhos, que emulam o formato de um jornal tradicional, o autor insere sua poética concretista usando os caracteres de uma máquina de datilografia para formar seus versos, sua prosa, seus poemas concretos e também toda a diagramação dos seus jornais, ou seja, margem, fontes, tipografia e tamanho de letra, tudo é composto apenas pelos caracteres de uma máquina de escrever. Cabe destacar que a inserção da poética concretista, nos jornais DOBRABIL, representa uma importante contribuição do autor para a renovação da poesia brasileira nos anos 70, conforme assegura Haroldo de Campos ao dar a Glauco o epíteto de Poeta do Asfalto em seu livro Poesia Urbana.
O álbum Melopéia é uma obra de Glauco Mattoso lançada no início da primeira década do século XIX, obra em que Glauco convida diversos artistas para interpretarem seus sonetos através da música. São escolhidos músicos das mais diversas vertentes, como o punk rock da banda Inocentes, o funk de DJ Krâneo, o escárnio de Falcão, o concreto de Arnaldo Antunes, o existencialismo de Humberto Gessinger, o punk brega de Wander Wildner e até mesmo o soprano de Edson Cordeiro, entre outros que caracterizam esse álbum como "Uma antropofagia, até sadia, / tornou a nossa música salada / de fruta, nacional ou importada" como canta Tato Fischer, tecladista dos secos e molhados, na faixa inaugural do álbum.
Importante explicitar como a obra de Mattoso é afetada pelo desenvolvimento do glaucoma, como, ao abraçar sua cegueira, o poeta se aferra aos sonetos isométricos, retorna a uma poesia calcada na sonoridade, no ritmo e na eufonia dos versos. É este evento que, ao tornar-se crônico, volta toda a genialidade do autor, antes posta na concretude dos seus versos, para os elementos do som. É interessante ainda perceber que a forma conecta esses elementos da poética do Pedro, o Podre até o Glauco Mattoso. Em seu Soneto 241 Ensaístico, cantado na Melopéia por Wander Wildner, o poeta demonstra seu reconhecimento por sua fase inicial “Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego.” para então dizer o motivo de sua guinada: “Forçou-me a invalidez a dar um basta.” e apresentar sua nova fase “A nova não é casta, nem contrasta / com velhas anarquias. Só me entrego / ao pé, onde em soneto a língua esfrego. / Chamemo-la de fase podorasta.” em que conta como, apesar da aparente distância, ainda há conexão entre suas fases à primeira Iconoclasta e a segunda Podorasta. Esta segunda ele concilia com a primeira ao dizer “Mas nem por isso é menos transgressiva. / Impõe-se um paradoxo na medida / da forma e da temática obsessiva” e, como chave-de-ouro, seu último verso é “Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.” em que o contraditório entra em harmonia através de sua poesia. O paradoxo de sua produção poética é parte de sua conciliação e une, nos seus próprios termos, a forma do poema concreto com a forma do soneto. E demonstra que é possível expressar-se dentro do crivo da forma em objetos poéticos que podem ser visuais como uma estrutura de concreto ou sonoras como aquelas de um cego aedo grego.
Capítulo 1: Fase Iconoclasta
Chamemo-la de fase iconoclasta,
à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.
JORNAL DOBRABIL
A fase iconoclasta do autor, tem na profusão das edições do JORNAL DOBRABIL1 o seu ponto de inflexão, ilustrando ali suas principais manifestações poéticas, políticas e estéticas. Posteriormente, o autor rememora essa fase no Soneto 241 Ensaístico. 2 Em seu quarteto inicial o soneto revela a autodefinição do autor como iconoclasta, alguém que desafia e destrói os padrões estabelecidos pela sociedade. Os versos “Chamemo-la de fase iconoclasta, / à minha poesia antes de cego. / Pintei, bordei. Porém não a renego. / Forçou-me a invalidez a dar um basta” expressam a atitude rebelde e transgressora do autor em relação à sua própria poesia. Mesmo na iminência de perder a visão devido ao glaucoma, ele não renega seu estilo e suas experimentações.
“Chamemo-la de fase iconoclasta”, o próprio autor assim a chama e é bem propícia tal afirmação, afinal, em sua produção dessa época percebe-se que o auto publicado JORNAL DOBRABIL se marca pelos heterônimos diversos atuando em diálogo, conflito, crítica e em registro marcante do momento, histórico, que o autor vive sua poesia antes de cego. Seus heterônimos poderiam muito bem cantar “Pintei, bordei. Porém não a renego.”, pois, durante os anos de chumbo da ditadura militar, as edições do jornal são, em suma, sua forma de protesto, sua militância artística, poética, estética e política. Neste período, as edições do jornal se tornam, em essência, uma forma de protesto e uma expressão de sua militância.
Dentro das páginas do JORNAL DOBRABIL, através do seu Manifesto Coprofágico 3, há um discurso que permeia seus heterônimos e os evidenciando em sua referência ao Manifesto Antropofágico 4 de Oswald de Andrade, travando uma guerrilha poética contra os poderes estabelecidos pelo golpe de 1964 e seus apoiadores na imprensa, revistas e na sociedade em geral.
Ainda na década de 1970, o poeta encontra na Arte Postal uma maneira de contornar a vigilância imposta pelos militares, adotando uma abordagem artesanal para a produção independente. A proliferação de revistas literárias na época inspira Glauco Mattoso na criação de sua obra - o JORNAL DOBRABIL. Durante as décadas de 1970 e 1980, ele reside temporariamente no Rio de Janeiro, onde ganha notoriedade na marginália literária ao editar o fanzine "anarcopoético" intitulado JORNAL DOBRABIL, um trocadilho com o Jornal do Brasil, que era então o jornal mais influente no Rio de Janeiro. Ao satirizar o Jornal do Brasil, o DOBRABIL vai além da mera paródia do nome, trazendo uma abordagem irreverente à poesia criada pelos heterônimos do autor, cujos destinatários eram cuidadosamente selecionados.
No JORNAL DOBRABIL, destaca-se não apenas o conteúdo com temas irreverentes, mas também a reinterpretação da antropofagia. Mattoso publica seus manifestos Escatológico5 e Coprofágico nesse veículo, reinterpretando a antropofagia oswaldiana sob o título de coprofagia, que envolve a reapropriação do que é excluído ou rejeitado culturalmente. Os poetas da época não visavam apenas estabelecer uma vanguarda literária tradicional; seu propósito primordial residia na oposição às circunstâncias políticas, morais e, sobretudo, artísticas prevalecentes. Mattoso adota uma posição contrária ao ideal de beleza, deliberadamente expondo uma linguagem transgressiva em seus manifestos. Seu vocabulário é repleto de palavras censuráveis pelos valores morais da sociedade em que se insere. Trata-se de um abandono estético dos padrões estabelecidos, questionando a necessidade de uma poética com palavras suavizadas e eufemísticas, em vez de termos que dizem explicitamente o que pretendem. Trata-se de um abandono estético dos padrões estabelecidos que questiona a necessidade de uma poética de palavras suavizadas, eufemísticas, de termos que aludem com vergonha de dizer o que querem de fato.
Ao longo do JORNAL DOBRABIL há um desfilar profícuo dos heterônimos de Pedro José Ferreira da Silva. Cada qual com sua própria persona, estilística e temática favorita. Pedro, o Podre compartilha as páginas, colunas e pautas do jornal com Pedro, o Glande, Pedro Ulysses Campos, Garcia Loca, Billy Lyra, Glauco Espermatoso, Pedravski, Pedro Pedra, Puttisgrilli e o próprio Glauco Mattoso. Interessa salientar que cada um assume funções editoriais que lhes são próprias, quais sejam, redator, editor, colunista, leitor, anunciante etc.
O que se pode chamar de seu projeto estético reside na meticulosa construção da persona literária de Glauco Mattoso, que confunde o leitor ao misturar aspectos de sua vida privada com seu universo ficcional. Isso permite uma leitura interpretativa que considera a figura autoral como um heterônimo, semelhante às instâncias literárias criadas no JORNAL DOBRABIL e em outras publicações que marcaram seus primeiros passos na carreira literária.
Segundo Ana Paula Aparecida Caixeta (2018), nós podemos recorrer a Fernando Pessoa (2012), que descreve a heteronímia como a criação de um "autor fora da pessoa", uma individualidade completa fabricada pelo próprio autor. Mattoso, por sua vez, apresenta uma notável proliferação de heterônimos, como "Pedro, o Podre" e "Pedro, o Glande", que desempenham diferentes papéis no JORNAL DOBRABIL. A repetição desse gesto criativo sugere uma possível revisão da ideia de que Glauco Mattoso seja apenas um pseudônimo. Seu apego aos discursos auto escarnecedores e à brincadeira com nomes próprios por meio de trocadilhos e personificações reforça a construção ficcional de sua identidade literária, indo além de um mero espaço para confissões pessoais.
Outrossim há um jogo com as distintas consciências literárias de seus heterônimos é uma constante ao longo da produção literária de Mattoso, sendo especialmente evidente em "Pedro, o Podre", satírico e fescenino, no JORNAL DOBRABIL. Em uma de suas publicações, Pedro, o Podre deixa claro que “cagar é um ato político”6 colocando assim a escolha manifesta pela coprofagia como tema central dentro da obra de Mattoso. O Podre é responsável pela parte mais chula e iconoclasta do jornal, enquanto Glauco Mattoso desenvolve poemas mais elaborados e de temáticas diversas. Embora haja essa distinção, não existe uma divisão clara entre os versos concretos, experimentais e humorísticos, pois ambos os estilos coexistem no JORNAL DOBRABIL.
Segundo João Maria Freire Alves (2015), em sua tese, seu principal heterônimo artístico, Glauco Mattoso, alude à sua cegueira e marca sua própria literatura, Mattoso, atravessa suas obras literárias com tantos outros heterônimos, especialmente na fase de escrita no JORNAL DOBRABIL. Entre eles estão Pedro, o Glande, Garcia Loca (com os quais assina seus dois manifestos mais famosos: Manifestivo Vaguardada e Manifesto Coprofágico), ‘Pedro, o Podre’, Glauco Espermatoso, Pedravski, Puttisgrilli, e o próprio Glauco Mattoso. Dentro da estética mattosiana, cada heterônimo possui identidade própria que, porém, não deixam de ser versões do próprio autor. Os limites distintivos entre os heterônimos e o autor são ambíguos e permeáveis. Convém notar que, dentro dessas miscelâneas de alcunhas, nomes e heterônimos o próprio Pedro José Ferreira da Silva, inexiste enquanto signatário dos textos literários. São esses heterônimos que ocupam todo o espaço autoral, não sobrando ao Pedro original qualquer espaço para assumir um papel autoral dentre os tantos que assinam suas obras.
A coprofagia, elemento central do JORNAL DOBRABIL e da maioria de seus escritos, é definida por Glauco, como uma releitura escatológica da antropofagia. Segundo Glauco Mattoso, ela representa a linguagem vulgar, inspirada em suas leituras, parodiada e transportada para o papel por meio de sua máquina de escrever, com a datilografia definindo o formato tipológico do JORNAL DOBRRABIL.
Coprofagia esta que é uma ação abjeta que faz parte do discurso da "merda" e representa uma sátira à antropofagia oswaldiana, que aglutinava elementos culturais alheios para criar uma cultura própria. Na visão de Mattoso, a coprofagia é um processo de recolhimento do que foi culturalmente excluído, representando literariamente a mistura e a influência direta do que é lançado ao autor como uma forma de apropriação do discurso e da criação do outro.
É no JORNAL DOBRABIL que os manifestos coprofágico e escatológico são publicados, estabelecendo uma ligação direta com o manifesto antropofágico oswaldiano. A cegueira que atinge Mattoso e sua fixação na podolatria, que compõe a narrativa de seus desejos íntimos e fetiches, desempenham um papel fundamental na construção de sua poética escatológica. Antes de perder a visão, o poeta recicla de forma jocosa a antropofagia oswaldiana, reinterpretando-a por meio do conceito de coprofagia. Este processo representa a valorização de atributos muitas vezes negligenciados no contexto formal do universo erudito.
(MATTOSO, JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 11).
Glauco Mattoso publica o Manifesto Coprofágico, um pastiche do Manifesto Antropófago em seu suplemento jornal dadarte que ocupava o verso de seu JORNAL DOBRABIL. Pastiche é um termo utilizado na literatura e nas artes para descrever uma obra ou estilo que imita ou faz homenagem a outros estilos, obras ou autores. Em um pastiche, o criador emprega técnicas, temas e elementos característicos de outras obras, misturando-os para criar algo novo, mantendo, no entanto, uma reverência ao material fonte. Essa técnica permite uma intertextualidade, dialogando com diferentes tradições e estilos literários ou artísticos. O pastiche pode ser usado para explorar ou questionar gêneros e convenções estabelecidas, oferecendo uma maneira de conectar diferentes períodos, estilos e abordagens em uma única obra.
Neste manifesto, Mattoso realiza um jogo de palavras com os versos iniciais do poema "Romance Sonâmbulo" de Federico García Lorca, dedicado a Gloria Giner e Fernando de los Ríos, que começa com "verde que te quero verde". Esse jogo de palavras é utilizado para desenvolver ícones comportamentais e transgressores que permeiam sua poesia. A palavra "merda" é recorrente ao longo de todo o "manifesto" e sugere a decomposição da tradição sem, no entanto, desprezá-la completamente. Os versos finais refletem a intenção e a atitude do poeta: "Merda (...) és meu continente terra fecunda onde germina, minha independência, minha indisciplina". A Coprofagia, dialogando com a Antropofagia e a tradição, torna-se um ponto de referência fundamental na poética de Mattoso. Enquanto os modernistas tinham a Antropofagia como seu princípio criativo, Mattoso adota a Coprofagia como uma forma de "degustar" preceitos anteriores para criar novas perspectivas. No entanto, ele adverte que o resultado dessa deglutição pode não ser agradável aos olhos da sociedade tradicional, patriarcal, censuradora e excessivamente conformista. Assim, ele desafia, rebela-se, confronta e choca com uma poética que está longe de ser convencional e moldada.
Escrever sobre Glauco Mattoso é uma tarefa que também possui suas facilidades ao deixar explícitas suas intencionalidades e metodologias. Seus escritos em prosa e verso frequentemente têm caráter autobiográfico e, além disso, apresentam uma dimensão autoanalítica, por meio da qual investiga sua própria psique, motivações, técnica e estilística. Em seu prefácio do livro JORNAL DOBRABIL, o autor discorre sobre o momento histórico de sua produção marginal, explicando sua técnica e os meios disponíveis nesse período.
O processo criativo de Mattoso desenrola-se como um intrigante jogo no qual o autor e o leitor se envolvem em múltiplas percepções, explorando o terreno entre o real e o fictício, o cotidiano e, principalmente, o humano. De maneira contrária às convenções e aos preciosismos associados à criação e à genialidade, Glauco Mattoso constantemente faz referência a essas normas, demonstrando sua compreensão perspicaz do processo criativo e autoral.
O poeta paulistano traça uma linha condutora que persiste em seu vasto conjunto de obras, guiada por elementos estéticos que se repetem com frequência, portanto, propositais e integrantes de um projeto estético deliberadamente construído. Entre esses elementos, a figura autoral com inclinações fetichistas – o sujeito que existe para além do domínio literário – é explorada com minúcia, da mesma forma que seus textos poéticos e narrativos. A preocupação do autor com a representação pública do escritor denota um gesto que vai além do aspecto estético, abrangendo discursos que outras instâncias hesitariam em assumir como autorais. Estes discursos, marcados por uma ironia em relação à própria poesia, à criação e à autoria, manifestam-se através de uma linguagem escatológica, dando forma à peculiar coprofagia glaucomattosiana.
Escolher uma figura autoral que dê conta da sua condição confessada – no caso, a maldição da cegueira e o fetiche por pés – e que assuma discursos complexos e delicados no que tange aos corpos, aos valores morais, éticos e religiosos é uma possibilidade válida quando se trata de um personagem. O autor chama a cegueira de maldição e alia-se a ela provocando uma espécie de personificação da cegueira e do glaucoma. O glaucomatoso Glauco Mattoso é bem mais do que um sujeito comum fora do espaço ficcional, é uma instância literária que ocupa o espaço da legitimação de discursos:
Só mesmo os estabelecimentos bancários (..) dispunham de computadores, então monstruosamente grandes. Jornalistas e escritores utilizavam máquinas de escrever (...) As duas marcas mais vendidas, Remington e Olivetti, não diferiam muito em qualidade o estilo, e todas apresentavam as mesmas limitações: fonte única, corpo único, padrões únicos de alinhamento verticais e horizontais, isto é, monoespaçamento (letra embaixo de letra, sempre o mesmo limite de toques por linha) e entrelinha mínima equivalente a um dente da engrenagem movida pela alavanca, de modo que esta descia uma linha avançando dois ou mais dentes. Quem quisesse trocar de fonte, de corpo, ou de redondo para itálico, teria que trocar de máquina (Mattoso, 2001: 2).
Quando Pedro José Ferreira da Silva assinava seu JORNAL DOBRABIL com sua profusão de heterônimos , o mesmo já tinha em seu horizonte a perda da visão para o glaucoma e sua poesia marcada pela visualidade do concretismo era uma de suas tantas auto ironias, pois, obsessivo com a perda futura da visão trabalhava com as formas mais intrincadas da poesia concreta:
Eu misturei as coisas porque o concretismo era muito clean, era muito limpo, era muito assim antisséptico, não contaminado pela poesia de banheiro, pela poesia de bordel e não de cordel, né? E eu comecei a misturar as coisas, então eu já fui, mais ou menos, mal-criado, né? (00:03:51 - Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa 2019 - Biblioteca Pública de São Paulo).
O Concretismo, um movimento literário e artístico que ganhou destaque na década de 1950, representa uma abordagem inovadora na poesia e nas artes visuais. Caracteriza-se pela ênfase na estrutura e na forma, em detrimento do conteúdo semântico convencional. Os poetas concretistas rompem com a linearidade tradicional da poesia, explorando a disposição espacial das palavras na página para criar significado e ritmo visual. Isso faz com que a poesia concreta transcenda a mera leitura oral, convidando o leitor a uma experiência visual e perceptiva mais ampla.
A Poesia Visual, intimamente relacionada ao Concretismo, amplia essa exploração da forma visual da linguagem. Enquanto o Concretismo foca na estrutura e na disposição espacial das palavras, a Poesia Visual vai além, incorporando elementos gráficos, cores, e até mesmo interações tridimensionais. Esta forma de poesia não se limita ao texto, mas utiliza todos os aspectos visuais da página (ou de qualquer outro meio onde seja apresentada) para comunicar e evocar emoções. A Poesia Visual desafia as fronteiras entre a poesia e as artes visuais, fazendo com que cada obra seja uma experiência única tanto de leitura quanto de observação.
O Soneto 241 possui fortes elementos biográficos e de autoironia. Nesta primeira quadra somos confrontados com esta fase na qual o poeta se enxerga como um iconoclasta o autor se utiliza dos eufemismos "pintei, bordei" para dizer de suas inúmeras transgressões à sociedade e aos padrões éticos, estéticos e políticos de seu tempo, conforme podemos perceber na citação acima. Em seu JORNAL DOBRABIL, principal publicação do autor à época, vemos expressões como "Cagar é um ato político" escrito através de uma técnica de conjugação de letras para formar um tamanho de fonte maior que a padrão da máquina de escrever utilizada. Sobre a própria máquina, seu instrumento de composição Glauco esmiúça detalhes do fazer poético que sofre a censura da própria técnica, onde as características inerentes ao funcionamento do equipamento que utiliza para datilografar os originais de seu jornal são fundantes para o resultado de sua produção estética.
O ovo de Colombo foi a descoberta do meio espaço, isto é, a possibilidade de teclar uma letra na posição intermediária entre dois caracteres normalmente digitados, o que era obtido pressionando-se o espaçador simultaneamente à tecla desejada. Aqui surgiu fundamental diferença entre uma Remington e uma Olivetti. A primeira não posicionava a letra exatamente na metade da distância entre os dois dígitos, enquanto a segunda tinha total precisão (Mattoso, G. Uma odisséia do meio espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2).
O autor descreve, detalhadamente, os aspectos técnicos que o fizeram optar pela Olivetti no lugar da Remington. Conta como o meio ponto preciso oferecido pela máquina escolhida foi fundamental para a realização das suas pretensões poéticas concretistas e satírico-fesceninas. Através dessa técnica de formatação do texto em uma página A4 o autor desenvolve uma capacidade de desenhar e emular um jornal de maneira autônoma e independente do maquinário necessário para imprimir um jornal tradicional. O JORNAL DOBRABIL é uma paródia poética e política dos jornais de sua época reiteradamente censurados e vigiados pelo aparato repressivo da Ditadura Militar vigente à sua época:
Feita a escolha, pude compor linhas "pontilhadas" onde cada ponto era representado pela letra "o" minúscula, que por seu formato circular permitia direcionar a linha tanto na horizontal quanto na vertical ou diagonal.(...) A partir daí, a criatividade e o mimetismo não teriam limites na pesquisa de famílias tipográficas assemelhadas às mais diversas fontes empregadas pela grande imprensa nos cabeçalhos e manchetes, bem como pelos artistas gráficos em seus projetos semióticos (Mattoso, G. Uma odisséia do meio espaço JORNAL DOBRABIL, 2001, p. 2).
Em suas páginas emulam-se colunas, reclames, propagandas, correio opinativo tal e qual um jornal tradicional, mas dessa vez com um conteúdo lírico que desconcerta o leitor e provoca a reflexão sobre os temas abordados.
Meu fanzine passou a fazer parte disso porque era uma folha só. Frente e verso, eu datilografava, xerocava e misturava nisso tudo. Nessa datilografia, misturava um pouco de poesia de banheiro não é um pouco de poesia concreta? E um pouco de classicismo, aquela coisa de mexer com os com os autores clássicos. Só que de uma forma desrespeitosa. (00:04:54 - Mattoso em entrevista a Pinto, Manuel da Costa 2019 - Biblioteca Pública de São Paulo).
JORNAL DOBRABIL pode ser dividido entre suas edições cariocas do ano de 1977 correspondentes às folhas de 1 a 21 da edição em livro e as paulistanas das folhas 22 a 25 de 1978, das folhas 26 a 33 de 1979, das folhas 34 a 49 de 1980 e das folhas 50 a 53 de 1981. No verso da folha 1 temos a assinatura de Pedro, o Podre nos versos: