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Poeta e apenas poeta

Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...

terça-feira, 20 de junho de 2023

Perdi

Eu perdi
        perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

os versos estão
na ponta da língua
lambendo meus molares
dançando nos caninos
procurando num canto
num canto qualquer
o resto do seu sabor

Eu perdi
        perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

aquele que lhe disse
jurado, extasiado
ao pé do seu ouvido
enquanto ainda sentia
o tremor de suas pernas
enquanto ainda ouvia 
o arfar de sua boca

Eu perdi
             perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

Estou aqui
como quem relembra o gosto do doce de sobremesa
horas após o jantar
eu não quero escovar meus dentes 
eu não quero pentear minha mente
na procura do verso perfeito
que lhe disse confessado e arrebatado

Eu perdi
         perdi
eu perdi o último poema que lhe fiz

Eu quero
quero o poema inteiro
pronto, perfeito e acabado
quero ele na minha boca
quero ele no seu ouvido
        quero
eu quero de novo o gozo que me fez poesia

domingo, 11 de junho de 2023

Prato Frio

Como deixar de cumprir
a promessa que você
fez pro seu eu do passado
num momento de rancor?

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Em azul

 


ESCREVORESCREVOESCREVORE
SCREVOESCVREVOREESCREVO
ESCREVORESCREVOESCREVORE
SCREVOESCVREVOREESCREVO
ESCREVORESCREVOESCREVORE
SCREVOESCVREVOREESCREVO
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SCREVOESCVREVOREESCREVO
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SCREVOESCVREVOREESCREVO
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SCREVOESCVREVOREESCREVO
EMAZULEMAZULEMAZULEMAZUL

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Composição

O poema deita-se 
e sobre ele a música
cavalga no pelo
e lhe faz piano
no toque uma nota
da pele macia
perfeito contralto 
língua e palato

A música cavalga
sobre o poema
geme ele barítono
arfa ela soprano
que quebra o verso
parte a partitura
sem qualquer pudor 
candura ou clave

Música e Poema
metonímia a dois
bemol sustenido
que bota no ritmo 
de quatro o compasso
alitera o si
escande seu sol
e ressoa sua rima

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Vale o risco

Qual escolha tem
a exibicionista
no meio do risco
se o seu público
lhe arranca do púlpito
morde seu púbis
lambe seu seio
agarra sua bunda 
e vira seu algoz

Devora a fome
sem nome ou voz
provoca a carne
geme e se entrega
pelo capricho 
do passo em falso
que torce seu pulso
põe de joelhos
e lhe faz beber 
cada gota merecida

Rebola plugada
lambuza seu cio
regojiza em vermelho
pra ser devorada
tomada no tato
de pelo com pele
atada no arremate
abate e gozo
feita puta vadia
acaricia a mão 
que lhe doma
em sua própria
casa e cama.

Sem hora na janela

Sonhava eu na janela entediada,
rezando baixo pro meu próprio santo,
de olho na rua tal quem não quer nada...
quando vi, tremi louca pelo encanto!

Então quis eu ser mesa para tantos:
comida, banqueteada e devorada
e mais, quis eu servir-lhes com meus prantos...
currada, laceada e arrombada!

Gabava-se ela, na matilha suja,
de falo em falo, vi aquela cadela 
latindo e sentia mia sineta rija...

Sofria? Era fato, mas a inveja
brotava no meu rosto e sem sobeja
eu babava pelos ganidos dela!


segunda-feira, 15 de maio de 2023

Passeio paraíso

Estou eu no paraíso:
dos dedos entrelaçados, 
na boca meu puro riso
e vestido bem florado.

Estou eu no paraíso:
do passaro e seu cantado,
com meu gemido bandido,
que me acabo e aterriso...

Estou eu no paraíso:
dos meus joelhos ralados, 
do meu ninho bem plugado,
onde tremo sem aviso!

Estou eu no paraíso:
dos meus passos bem contados,
no seu carinho querido,
que lhe lambo até seu piso...

Estou eu no paraíso:
do pescoço encoleirado,
do meu orgulho preciso,
que lhe dá todo cuidado!

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Cavalga-me

Cecília, noite toda úmida de teu mel...
dedilha, com amor, o cobiçado anel.
Enamorado, te faço um convite galante:
teu esfíncter ao redor de minha glande!

Cavalga-me! Do teu cavaleiro fiel,
será dama do lago ardente em corpo e véu.
Eu, afogado por ti: cócix, virilha e ventre,
navego na saliva atrás, entre e de frente!

Trago goles de vinho adivinho teu ato:
que me fala e faz e no falo me fela
que deseja vadia meu dulcíssimo gozo!

Te faço no meu mimo um deleite e maltrato:
teu tremor, teu gemido e grito me celebra
na fome que fartado em ti enfim me repouso...

terça-feira, 18 de abril de 2023

Me toca

Ela  puxa pela vista
paro, penso e me pergunto
pela mais bela passante 
que Baudelaire jamais veria

Ela está aqui, nos trópicos
de outono tão quente
de verão quase infernal
aqui a passante é Preta

Ela seu piano toca 
numa multiplicidade
como alguém feliz que dança,
e brinca pronta pra próxima
 
Ela tem o tempo certo
feito de Poesia e Música
nas assonâncias e versos
co'a Melodia alinhavada

Ela é sim minha cidade
tão mais bela que Veneza
ou qualquer das muitas outras 
que conta e canta Calvino

Ela toda é Musa e Música 
Musicista? Não! Metrópole
cujo ser confunde bem  
meu estar co'encantos e acordes 




terça-feira, 4 de abril de 2023

Memória,

Tenho-te tentado
mas é que aí dentro
não cabe mais tanto
do quê já te coube
no peito ferido

Já não cabe nada
que só bate o tempo,
teu tempo, contado,
medido, preciso
e cronometrado.

Conta quanto tem
de tempo no tempo,
conta do relógio
quebrado no quadro
do retrato antigo.

Contempla o ponteiro
parado no tempo
a volta não feita
o atraso cobrado
marcado na seta

Tá, bate teu ponto
retira tua meta
nem tenta tua sorte
conserta na certa
ou mente que não 

segunda-feira, 27 de março de 2023

a velha, a lagarta, a caveira e a borboleta

A morte é vida
o fim, começo

O novo devora
o velho transmuta
num círculo sem
começo ou fim

E isso é belo

segunda-feira, 20 de março de 2023

Qualquer dia desses

Banho, cama, cerveja
dividiria fácil com você
qualquer um dos três

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

De gênia

Adoro seus dreads
por entre meus dedos
afago e me deixo
beber dos seus beijos

Adoro seus dedos
tocando meus pêlos 
que me faz piano
desses seus carinhos

Será essa poética 
feita corda e guia
de canção macia

Serei sua música
seu ritmo, cadência
de toda indecência
 


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sátiro Selvagem

Sou seu sátiro selvagem
Sou seu sáfico sutil

Sou seu sátiro selvagem
salteando seus sonhares
Sou seu sátiro selvagem
sim, sou solitário sábado
Sou seu sátiro selvagem
safo, sade, sensualíssimo

Sou seu sátiro selvagem
Sou seu servo sadeano

Sou seu sátiro selvagem
serpenteando sepulcros
Sou seu sátiro selvagem
sombrios, sutis soluços
Sou seu sátiro selvagem
sem sorriso satisfeito 

Sou seu sátiro selvagem
Sou seu sulfi salivante

Sou seu sátiro selvagem
salivando sensuais
Sou seu sátiro selvagem
sanhas sofregas sativas
Sou seu sátiro selvagem
seduzindo assim seu sexo 

Sou seu sátiro selvagem
Só sou somente sou sempre
sem sutilezas sou só 
só seu sátiro selvagem 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

bucólico

Você acha que rola
de trocar o seu mamilo
por essa acerola?

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Na copa, cozinha ou quarto

Quisera eu ser seu Brasile
 você minha Coreia
e no deserto, num ato
lhe meter de quatro

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Pós foda é foda

Pós foda é foda
mandei no zap a real

é que meu pau
já tá com saudade 
do seu cuzinho

Paixão de pica é pica
nem fez um docinho

e o meu cuzinho
já tá com saudade 
do seu pau 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Haiquase 404

plantas de plástico
fazem fotossíntese
com luzes de led

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

PARA UMA DIALÉTICA DOS PRAZERES

Lhes tomo como um escultor e não 
como um pintor, pois não tenho eu
uma tela em branco, um terreno
baldio, sem vida. A minha lavra
é de pedra, com seus veios, ranhuras,
rachaduras e sua própria forma pede;

Pede por, uma nova forma, um novo
modo de cantar suas dores e feridas.
Envolvo, justamente, onde lhes sinto
os seus mais profundos fascínios.
Pois lhes testo as próprias defesas
e lhes ato em seu próprio gozo!

Para as que desejam a prisão;
cordas, algemas e amarras.

Para as que anseiam a humilhação;
abusos verbais e ordens públicas.

Para as que tremem na dor;
meus chicotes e meus tapas.

Para as sensoriais, meus pés;
minha venda e minha vela.

Para as que tudo é pouco;
o meu nada e nada mais! 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Poema retirado das mensagens do zap

a ninfo me confidenciou:
mamei um peão meses 
atrás no terreno baldio

Ele
trombei com ele 
numa rua escura
nos olhamos
e saí andando

Delicioso
de uniforme e coturno
indo pra casa
vindo da fábrica
o fdp tava delicioso

Negão
Não teve nem diálogo antes
ele entendeu e veio atrás
sentindo o cheiro do meu cio
fomos parar num mato

Pentelhudo
cheirão gostoso de pica 
me matando de tesão
tirei o leite dele
todo na minha boca

Poema Autoral

No Brasil de cada 100 poetas que publicam
96 morrem sem viver dos 10% pagos pela editora

No Brasil 
de cada 100 poetas que publicam 
96 morrem sem viver dos 10% pagos pela editora

No Brasil
de cada 100 poetas
que publicam 
96 morrem
sem
viver dos
10% pagos pela editora

sem viver dos 10% pagos pela editora
sem viver dos 10% pagos pela editora
sem viver dos 10% pagos pela editora
sem viver dos 10% pagos pela editora 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Alusivo

Ah ela, a tal língua 
que lhe lambeu 
loucas maledicências 
de loucuras, malfeitos, 
malfados e maldades

Ela, língua, logrou 
eloquente êxito
e meu lirismo 
está de luto

Não lhe olharei linda
meus olhos são lágrimas
cada cheiro cada palavra
de seus lábios vermelhos 

censuro meu verso
censuro os sonhos
vejo os demônios
que nos deram 
num buquê de flores
é primavera!

Você reluz
meu amor
meu gesto
meu ato
mas não
não mais
nada

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Também é poesia

Quanta angústia cabe
dentro dum poema
Cada dor num verso
Cada drama numa estrofe

Mas o quanto de verdade
Eu lhe confesso em verso
Eu lhe confio em prosa
e quanto goza meu martírio
daquilo que não digo?

Carrego culpas tamanhas
temperadas com sonhos
desfeitos pelos meus erros
não preciso do seu dedo
em riste acusando tudo
tudo aquilo que sei
e já cansei de me mentir

Já não leio como lia
páginas e mais páginas
madrugada a dentro
porém, pro meu tormento, eu não durmo
passo em claro em silêncio
sem urro no meio da noite
guardo a dor bem guardada
num prateleira de mágoa e melancolia

Será que um dia eu esqueço
dessas culpas que só eu sei
e passo o bastão desalmado
prum desavisado mais romântico?
Será que um dia eu esqueço
de carregar esses ossos
e guardo num armário
como todo mundo?

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Faço música de sua letras

Oh...  quanto delírio 
que quando lhe penso 
deságuo eu no intenso
toque que dedilho

tal meu instrumento 
que os dedos eu trouxe 
pro seu sexo doce
que inunda sedento

jorra feito fonte
de sujos pecados
numa imunda mente

De anjos safados
que gozam defronte 
o meu dedilhado 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

no colo

de bruços
plugada
levando
palmada

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Cecília Filósofa

Saiba: nem tudo vem dos descaminhos,
porque também há os vícios dos vinhos.
Afinal, nem o mundo é só impurezas...
também competem muitas malvadezas!

Saiba, nem serão sempre esses espinhos...
há ferrões nos melhores dos caminhos.
Pois que nem tudo é sempre uma tristeza,
sobra também tais fomes e pobrezas!

Pequena, são mazelas da virtude,
das que infligem tormentos amiúde,
dignas de quem só o bem deseja e faz,

Sei que admira esses bêbados devassos,
amantes, libertinos, cordas, laços 
tudo querem assim mais que demais


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

hai-quase explicito

jorro natural
recolhido por seus lábios
saliva-me o sêmen 

sábado, 16 de julho de 2022

Minha orquestra

Lhe dedilho o sexo
perfeito piano,
Dessas suas nádegas 
própria percussão,

Da boca e dos lábios
o meu saxofone
E seu corpo inteiro
o meu violão

Qual o seu gemido
em dó sustenido?

de lado, de quatro
de joelho o retrato?

que no ré lhe trago 
pro perfeito estrago

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Análise da Canção Ouro de Tolo de Raul Seixas


 Raul dos Santos Seixas, cantor e compositor baiano, nascido no ano da bomba atômica se definia como um canceriano sem lar. Era pois, um cronista ambíguo e contraditório em muitas de suas composições que aqui analisaremos sob a perspectiva econômica de sua época, O Brasil da Ditadura Civil-Militar ocorrida a partir do ano de 1964 cujo próprio término em distensão lenta e gradual Raul como seus espírito de mosca na sopa duvidava quiçá só para incomodar, quiçá para apontar ali uma ferida, um incômodo que seria mais conveniente ignorar.

O caráter monetário, concreto da natureza de seus versos  acontece desde o título de sua canção “Ouro de Tolo” do álbum Krig-ha, Bandolo! lançado no ano de 1973 durante o chamado Milagre econômico brasileiro período propagandeado pela Ditadura como de enorme pujança e prosperidade para o país.  Mas o Eu-lírico do autor inicia seu canto dizendo que:

“Eu devia estar contente

Porque eu tenho um emprego

Sou o dito cidadão respeitável

E ganho quatro mil cruzeiros por mês”


O devir, o dever ser inaugura o poema contestando a ética protestante da realização pelo trabalho, pois põe em cheque a certeza que o indivíduo respeitável por ter um emprego e uma renda, tenha em situação de alteridade a sua auto realização.  Na estrofe subsequente:


“Eu devia agradecer ao Senhor

Por ter tido sucesso na vida como artista

Eu devia estar feliz

Porque consegui comprar um Corcel 73”


O elemento religioso se impõe novamente e a realização da rima entre o mês e o sententa e três novamente demonstram como valores de realização primeiro o salário nominativo e em seguida um carro novo, do ano do lançamento do álbum denotando um sucesso financeiro que deveria ser garantidor do seu próprio contentamento e se esse devir não se realiza, se o eu-lírico não canta seu agradecimento, há uma dissincronia entre a expectativa capitalista de realização e o próprio anseio humano.


“Eu devia estar alegre e satisfeito

Por morar em Ipanema

Depois de ter passado fome por dois anos

Aqui na Cidade Maravilhosa”


Nesta estrofe impera novamente o devir e o incomodamento do eu-lírico se expande para um dos bairros símbolos do crescimento nesse período de um novo Rio de Janeiro, bem distinto daquele Rio antigo das crônicas do bruxo do Cosme Velho. Se Laranjeiras, Glória, Botafogo, Lapa, Flamengo são o pano de fundo das narrativas machadianas por serem os espaços frequentados pela elite carioca de sua época. Aqui, na obra de Raul seixas, Copacabana, Ipanema e Leblon assumem esse papel em um Rio de Janeiro que não é mais capital do Império ou da República, mas que mantém-se ainda como a meca dos artistas, para qual todos que querem colonizar seu espaço no mundo das artes devem migrar. E mesmo após passar fome por dois anos na Cidade Maravilhosa, o sucesso não basta para extinguir a alteridade do devir do eu-lírico. E o que era apenas devir se afirma como negativa nas duas quadras a seguir:

“Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso

Por ter finalmente vencido na vida

Mas eu acho isso uma grande piada

E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente

Por ter conseguido tudo o que eu quis

Mas confesso, abestalhado

Que eu estou decepcionado”

A vinculação da felicidade ao sucesso financeiro apregoado pela ética capitalista é, para o eu-lírico uma piada, e pior, uma piada perigosa. Pois, apesar de ter conseguido tudo que quis é com espanto que ele se percebe decepcionado com essa promessa.  a partir dessas estrofes a uma mudança no tom dos versos pois o artista decepcionado deixa de apenas narrar o seu devir para lançar outras dúvidas e explicitar diretamente o seu sentimento de falta, onde as recompensas e realizações ofertados pela sociedade capitalista não  são o bastante para que ele se sinta pleno.

“Porque foi tão fácil conseguir

E agora eu me pergunto: E daí?

Eu tenho uma porção

De coisas grandes pra conquistar

E eu não posso ficar aí parado”


Neste momento de virada da canção, quando o compositor troca as quadras por uma sextilha vemos um eu-lírico que abraça a incongruência, o contraditório que não cabem no estreito espaço ético da sociedade brasileira que sob o milagre econômico que ao mesmo tempo oferecia carros do ano para o artista, que relembra a fome na Cidade Maravilhosa, mesma fome que matou mais de meio milhão de pessoas do mesmo pais na Grande Seca de 1970. E o questionamento “e dai?” remete ao imponderável, o abstrato que não cabe em 4 mil cruzeiros por mês, que não se concretiza em um corcel 73 e nem se negocia com vencer a fome tão distante de suas própria terra. E assim, esse eu-lírico se distancia daqueles protestantes weberianos que vão ao novo mundo fundar o capitalismo através da ética do trabalho.

“Eu devia estar feliz pelo Senhor

Ter me concedido o domingo

Pra ir com a família no Jardim Zoológico

Dar pipoca aos macacos

Ah! Mas que sujeito chato sou eu

Que não acha nada engraçado

Macaco, praia, carro, jornal, tobogã

Eu acho tudo isso um saco”


Após a sextilha o compositor retorna ao esquema de quadras e enquanto nas quadras iniciais o eu-lírico aparecia em um questionamento do seu devir, no que devia ser mas não se realizava, sem contudo, expressar seu contentamento, neste par de quadras vemos  a tensão da primeira quadra ser resolvida na segunda. O devir da primeira é negado em seguida. e retoma os elementos das quadras anteriores quando do terceiro verso da segunda estrofe. Pois nem os macacos do Jardim Zoológico, nem a praia de Ipanema e muito menos seu corcel 73 aliviam o vazio que não se preenche com as recompensas por ser “um dito cidadão respeitável”

“É você olhar no espelho

Se sentir um grandessíssimo idiota

Saber que é humano, ridículo, limitado

Que só usa 10% de sua cabeça animal


E você ainda acredita

Que é um doutor, padre ou policial

Que está contribuindo com sua parte

Para o nosso belo quadro social”


Pela primeira vez o eu-lírico se dirige para o interlocutor, despejando seu próprio descontentamento no outro que vê como um espelho, como também pertencente ao “nosso belo quadro social”  Elenca àquelas profissões fundamentais nessa estrutura, ao mesmo tempo que os lembra que são animais, seres limitados e que a despeito das conquistas, das contribuições ainda permanecem carentes de significação, de objetivos maiores que só se realizam dentro das expectativas limitadas e limitantes dessa sociedade.  E tal processo acaba por  guiar o interlocutor para o fechamento da canção.

 

“Eu é que não me sento

No trono de um apartamento

Com a boca escancarada, cheia de dentes

Esperando a morte chegar


Porque longe das cercas embandeiradas

Que separam quintais

No cume calmo do meu olho que vê

Assenta a sombra sonora dum disco voador”


Para se distinguir dos seu interlocutor o eu-lírico nega a posição do dia de domingo, de ser mero espectador de sua vida conquistada, de suas próprias pequenas e burguesas realizações, refere-se a “um apartamento” de maneira indefinida pois a vida de seu habitante é igual e genérica como a de tantos outros habitantes, cidadãos respeitáveis que dormem em seus sofás de boca aberta sem mais expectativas, sem sonhos de mudanças. Mas em sua última quadra o eu-lírico canta acerca do imponderável, de um lugar longe do sonho burguês de uma casa com cerca e quintal, tal qual um filme americano. Fala daquilo que está na margem da visão, em seu ponto mais calmo, uma sombra sonora, uma sinestesia que torna o extraterreno a solução para quando a realização protestante da redenção pelo trabalho oferece apenas o material mas não desfaz o mal-estar existencial. 

Sob a égide de um Milagre econômico que só satisfaz uma pequena classe média, o Brasil de 1973, tem fome, tem miséria, tem tortura e opressão que não são maquiados pelos números econômicos, que a ficção monetária não consegue ser verossímil para quem já passou fome. Em uma canção onde os elementos autobiográficos ressoam temos um migrante nordestino percebendo que a promessa de prosperidade é falseada e falseável. Que não há bilhete premiado que garanta a felicidade além das recompensas ofertadas para o bom trabalhador. 


terça-feira, 5 de julho de 2022

Tempos melhores

Quero magia, cor e cenas
pra toda boca que beija
Bang bang só nos cinemas
retomados das igrejas
Bibliotecas eu prefiro
do que esses clube de tiro