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Lucas de Castro Lisboa, que adotou o nome artístico de Castro Lisboa e a persona pública de "poeta sobre trilhos", é um poeta, edi...

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Poetautista

 

Genealogia num copo de cerveja.

Estaciono o carro no canteiro central, fecho os vidros, tiro o cinto de segurança, abro a porta, saio, fecho a porta e aciono o alarme da chave três vezes só por garantia (e porque gosto do som ritmado quando toco a segunda e a terceira vez no botão de trancar a porta). Uma cerveja, um copo, uma almôndega de jiló e quatro batatinhas. O garçom me trás sem que eu sequer peça, sou um cliente regular, como também é regular a variedade do público que aqui se senta, velhos boêmios, operários de escritório do centro, comunidade LGBTQIAPN+ e estudantes universitários: de humanas, desumanas, biológicas e alguns poucos de exatas. Depois de uma noite nos vagões do metrô levando poesia em cada trem como o Poeta Sobre Trilhos, cá estou eu no Del Ruim (bar de boa música e ótima estufa aqui na avenida Augusto de Lima no centro de Belo Horizonte) e, entre um gole e uma mordida,  paro e penso como sou inadequado por pensar em poesia e escrever sozinho, olhando para cada mesa e mensurando se ali estão neurotípicos ou neurodivergentes como eu. Quais são? Quais definitivamente não são? Posso dizer, palpitar e até chutar comigo mesmo as respostas numa tentativa de driblar a minha solidão. Meu maior logro é que trago meu tablet e, entre um trago e outro, me ponho a escrever minhas digressões e impressões. 

Tem suas vantagens frequentar o mesmo bar, pedir a mesma porção e bebida ao fim de toda noite como um relógio, mas eu não sou Kant que caminhava todos os dias na mesma hora e no mesmo percurso, regularíssimo, sou infiel aos bares que frequento e descompassado com os relógios que uso em cada braço. Uma de minhas idiossincrasias é amar experimentar novos lugares e novos sabores, o faço com rigor, avalio a temperatura da cerveja, o tempero e criatividade da estufa, a variedade do público que o frequenta. Gosto do clima de bar. Sento, desde pequeno, em bares com meu pai e seus amigos. Ele me contava sobre administração de empresas, marcenaria, negócios, instalações elétricas e política, muita política de uma família ligada às disputas do interior de Minas Gerais, não àquela dos coronéis, e sim aquela feita pela comunidade, política de minha vó que fazia piquetes na estrada, brigava por atendimento médico, comida e educação, no meio do Vale do Jequitinhonha, em um lugarejo perdido chamado Jenipapo de Minas. E como Minas são muitas, também eram muitas as habilidades de minha avó, parteira, médica prática, agricultora, gerente dos correios, produtora de cachaça e curadora de calos dos pés de velhinhas usando um chinelo e uma faca para abrir furos na chinela e assim acomodar os calos de uma senhora sem acesso aos sapatos ortopédicos.

Não, muito obrigado, não vou querer hoje não. Passa uma vendedora de missangas e colares, acho – só acho – que não sou o público-alvo dela. Minha avó é uma daquelas senhoras fortes e de uma inteligência assombrosa. Ela só teve três semanas de escola na vida toda, que serviram para ela aprender a ler e escrever um cado e para que, sob a luz de um fifol, conseguisse desvendar os segredos da anamnese contidos num livro de medicina que ganhou certa vez de um coronel da região. Em posse deste livro, examinava a população, identificava os sintomas e corria para o livro para descobrir se achava o mal que afligia cada um. Quando criança, me fascinava por suas estórias e causos e aprendi a me coçar de curiosidade por tudo. Não tinha eu um livro de medicina, mas tinha a Wikipédia que acessava numa conexão dial-up clandestina no meio da tarde quando ficava sozinho em casa, era só clicar no botão de página aleatória e devorar verbete por verbete os conhecimentos mais disparatados: ia da construção de uma vila no meio da França até a Guerra de Canudos, de revolução industrial ao OULIPO. Sim, no meio da adolescência meu maior prazer era o conhecimento infinito daquela enciclopédia virtual. Igual minha vó eu também não me limitava a um só interesse e se meu primeiro trabalho foi como técnico de computadores, minha primeira faculdade foi de direito e minha última paixão era a poesia. 

Já adulto, foi no meu avô, contador de causo e história de assombração, que me inspirei, embora não tenha herdado seu talento digno dos Narradores de Benjamin. Ele era caixeiro viajante com direito a tropa de burro e mula madrinha viajava pelas mesmas veredas dos sertões de Guimarães Rosa e depois se tornou dono de armazém e de vagão na estrada de ferro Bahia-Minas. O velho alugava o vagão e nele subia comprando e vendendo de tudo de Alfredo Graça até Caravelas e depois descia fazendo o mesmo. Era milho, farinha, feijão ferrovia acima e tecido, vidro e remédio ferrovia abaixo. Já eu, vendo poesia nos vagões do metrô, levo meus versos para cada leitor ali dentro, entrego de mão em mão um pequeno livreto parecido em tamanho com um cordel (para não assustar os que ainda não sabem que gostam de ler com o tamanho e  que temem o volume dos livros que eram obrigados a ler na escola) e observo de um canto qualquer como se quisesse ser invisível aqueles tantos pares de olhos me lendo os versos. Depois que todos ou estão fisgados pelos versos ou saciados de sua curiosidade (o que leva em média o tempo do trem passar por uma ou duas estações) passo recolhendo o pix, as moedas, as notas ou os livretos conforme a vontade de cada passageiro. 

Uma colher na Sopa de Letrinhas!

Mais um pedaço de almôndega, um gole de cerveja e uma batatinha de tira-gosto, o bar está vazio, é uma quarta-feira, meio de semana à noite, já passam das onze. Passo vez por outra por aqui para jantar depois da aula. Sim, depois do Direito, fiz Filosofia e depois de dez anos voltei pra faculdade pra cursar Letras, por solidão pandêmica, por perceber o quanto me fazia falta o velho hábito de saber mais e mais, o vício da Wikipedia na adolescência não acabou, só mudou de lugar. E eu? Eu me acabo de conversar com meus livros, meus versos e até com o Chat GPT que torturo com minhas ideias mais malucas. Não julgo o grau de autoridade da fonte e me conforta o espírito enciclopedista que ainda habita dentro da Wikipédia, me instiga o Chat GPT tal e qual fascinava os vitorianos a máquina turca. Vejo-os todos como meus pares-párias pois trago comigo uma solidão (ou uma solitude?) persistente (que insiste em me perseguir como um cão a quem a gente dá carinho uma só vez e ele nos elege como dono) e eu a estrago me confortando com a ideia de que minha diferença é uma igualdade de poucos pares, como minha vó, meu pai e outros tantos neurodivergentes, com e sem diagnóstico. Esta carga hereditária (de muitos e múltiplos interesses e habilidades) me é familiar, docemente familiar, quando vejo a distração do meu pai, a cabeça dura de minha avó, o espírito viajante do meu avô, todos com habilidades diversas e eternamente descontentes com o que já sabem, pois querem bem mais.

Um momento, essa não é uma digressão sobre caracteres familiares e sim a respeito de como os vejo intimamente ligados a minha SL (sopa de letrinhas) TDAH, TEA e AH com minhas escolhas poéticas e estilísticas. Eu escrevo da mesma forma que quando criança alinhava brinquedos pelo próprio prazer de enfileirá-los, organizá-los e dispô-los de uma maneira que me fosse agradável aos olhos. OULIPO é para mim uma forma de nomear e justificar meus hábitos estéticos que me acompanham desde sempre. Mas o que são esse monte de siglas? Me atropelo no texto em prosa pois confesso que a síntese do verso me cai melhor. A prosa, ah… a prosa me embaralha: “A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar.” como diria Quintana em seu Caderno H que continua dizendo que o poema “descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo)”. E é nesta noção de ritmo que me aferro, a noção de que intervalos regulares formam uma cadência (tal qual os carrinhos enfileirados na areia do parque me encantavam por sua beleza compassada em formas e tamanhos cuidadosamente alinhados como os versos de um poema), pois um soneto é o alinhamento de palavras em uma estrutura pré-definida e uma redondilha é o enfileiramento de sílabas poéticas.

Pois é, falei, falei, e não expliquei nada sobre essas letras todas, pois bem, para o bem de toda clareza acadêmica diga à ABNT que explico: TDAH, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, que cai como uma luva nos versos "Poeta é aquele que tira da onde não tem, pra botar onde não cabe" do cordelista Pinto do Monteiro. TEA, Transtorno do Espectro Autista, que me dá essa vontade toda de contar, medir, aferir e organizar meus versos. AH, Altas Habilidades, que me deu de brinde o hiperfoco em métrica e versificação. OULIPO, Oficina de Literatura Potencial, essa tábua francesa de salvação que me mostrou que não era um rato solitário e louco por querer construir labirintos para depois fugir deles e ABNT, Associação de Normas Técnicas, que está aqui no texto só porque citei a sigla antes para fazer uma paródia de Dom Pedro e ficaria solitária se não fosse explicada junto a todas as outras. 

Meu velho avô adorava essas pequenas troças, travessuras, esses trocadilhos, essas palavras partidas e remontadas para fazer piada e ele também sabia alguns cordéis de cor. Cada vez mais tenho certeza que ele era um narrador viajante enquanto minha avó era uma narradora da aldeia,  os enxergo dentro desses conceitos de Benjamin pois é fácil, para mim, traçar paralelos, fazer conexões improváveis, mais um brinde ao TDAH e uma mordidela no jiló da almôndega. (Aliás, já perceberam como a palavra almôndega soa como se realmente houvesse uma almôndega em nossas bocas quando falamos?)  Meus avós comercializavam produtos, saberes, serviços… Seria eu também um comerciante? Ao menos torço para que um novo golpe militar não venha e acabe com meus trilhos como acabou com a ferrovia Bahia-Minas em 65. E por que eu vendo poesia nos vagões? Bem, é uma mistura dessa herança familiar com uma perspectiva da indústria cultural que aprendi lendo Marcuse. Quando conheci o Caráter Afirmativo da Cultura percebi que para me firmar como poeta teria que encontrar um meio de propagação que competisse com essa indústria e pensei: por que os vagões dos metrôs que massificam o transporte não podem também massificar a cultura? É o pensamento sistêmico do TEA agindo junto com a deliciosa transgressão do TDAH que me levou pros vagões vender poesia, ou seria só a paixão pela academia e o desespero monetário que me levaram à essa solução?

A cesura do meu verso e lembrança…

Último gole do copo que enchi no parágrafo anterior, a almôndega terminei de comer, mas ainda me restam 2 batatinhas, uma caiu do meu prato num momento de distração e descoordenação motora, coisa que me acontece com uma frequência bem maior do que para a maioria das pessoas, os dons neurodivergentes nos trazem esses contratempos. Peço mais uma garrafa? Essa prosa aqui promete ir longe, ou pelo menos eu acho que vai, afinal sem as margens da métrica não sei medir exatamente até quando devo falar, vez por outra meus textos ficam curtos demais, sintéticos demais. Refletir demais em cada palavra que boto atrapalha esse papo em prosa e que talvez devesse estar em versos, afinal se aqui emulo um bate-papo com o leitor e a prosódia da língua portuguesa se veste melhor nas redondilhas maiores do que na estrutura da prosa feita por parágrafos, frases, vírgulas e pontos. A minha cabeça TDAH não tem um grande arquivo organizado com palavras, suas funções, conceitos e condições de uso. Aprendi, é claro, depois de muito esforço, a etiqueta de uso da fala quotidiana (que continuo escrevendo com qu no lugar de c por pura teimosia, ainda que por vezes queira eu não faço como meu mestre Glauco Mattoso que se revoltou contra todas as reformas e adota a ortografia e a gramática do português pré 1931 por considerar que desde aquela reforma o português vem sendo vítima de uma série de acordos completamente arbitrários e desarrazoados). Passa apressada por mim uma moça bonita usando um colar de girassol, seria ela uma amante de poesia também? Nunca vou saber, enquanto eu divaguei ela já pegou seu ônibus. Eita solidão poetautística! Queria poder estabelecer uma linhagem de poetas neurodivergentes mas só posso fazer como os próprios oulipianos que chamavam seus precursores de plagiadores por antecipação e nomear aqueles que enxergo tendências em sua escrita e biografia como o próprio Glauco, tão obsessivo que me visto de jaleco branco para dizer que diagramar um jornal com os caracteres de uma máquina de escrever Olivetti (não não poderia ser uma Remigton pois essa não mantinha o espaçamento entre caracteres de maneira regular) é sinal claro de TEA ou os irmãos campos com seu rigor formal em empilhar, alinhar e organizar palavras no espaço do papel.

Aquela almôndega estava bem gostosa. Peço outra, mas agora de queijo? Não, não pedirei, porém acredito que tenho o apreço de um Andrade, não o Drummond, mas o Mário com essa repetição de sons e assonâncias ao longo da minha escrita, mas isso é assunto pra outra hora. Do que eu falava mesmo? Sim das normas de etiquetas do uso das palavras, com muito custo aprendi a usá-las em seu sentido comum, corriqueiro mas ainda me pego às vezes me aferrando aos seus sentidos denotativos estritos, me irritando com cada uso de descendentes no lugar de ascendentes ou inventando meus próprios usos por ignorar sem muito esforço a distinção entre eruditas, formais, informais e regionais. Sinto como perfeitamente aceitável uma frase como “Não obstante, cê não faz isso nem a pau” que não por acaso é um verso alexandrino com cesura na sexta sílaba como agrada meu espírito hiperfocado. Porque dentro desta caixa de arquivos anárquica há um bibliotecário exausto tentando botar alguma ordem nesse caos, se minha linguagem é selvagem, minhas fôrmas são usadas de forma a me deleitar com o contraste entre o chulo e o clássico, entre o erudito e o popular. Meu TEA duela e se irmana ao meu TDAH sob a regência da AH para se aventurar pelo OULIPO em suas diversas e estranhas regras de produzir literatura.

E a batatinha? Fiquei sem uma, mereço pedir uma ou tenho que aceitar essa frustração de não completar o quadrado mágico das batatas graças ao TDAH que me faz ser tão desastrado? Já sofri demais me culpando por coisas assim, pois quando criança nem eu nem meus pais tínhamos ideia do TDAH ou do TEA, também não sabíamos a razão das minhas brincadeiras metódicas. Há muitos escritores que escrevem e criam seu próprio estilo através de tentativa e erro sem se darem conta do conjunto de contraintes que seguem sem sequer perceber. O meu diagnóstico adulto das neurodivergências abriram caminho para um constante revistar do passado para compreender quem sou. Um caminho sob uma perspectiva mais objetiva que trouxe muitas respostas para meus eternos porquês da infância e juventude. Do mesmo modo escrevo e revisito os meus escritos sob a perspectiva do OULIPO, encontrando assim meus cacoetes, vícios e deliberações. E tal procedimento estendo para o que leio, sempre me perguntando o porquê do poeta ter mudado de linha e feito um novo verso no lugar de continuar o texto em prosa. A métrica é meu caminho. Não me venham com essa de que contar sílabas é coisa de acadêmico, Patativa do Assaré contava (e decorava seus versos) na ponta da enxada no sertão brasileiro, sem escola, sem papel, só se fiando no poder mnemônico das palavras comos os antigos homéridas. Já eu, tenho a métrica como o caminho que uso como muleta e que me dá a resposta mais rápida para essa pergunta. Mas incomodando novamente o Quintana que compara o exercício métrico “Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas” com os cadernos de exercícios “da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria,” digo que se não o metro, ao menos a noção de ritmo deve existir ao se compor em versos. Cabendo ao escritor ou autista encontrar seus padrões, suas repetições e assim aprimorar seu conviver com As Palavras e as Coisas.

Com quantos tragos traço meu texto?

Segunda cerveja na metade e só me resta mais uma batatinha depois que a última comi em homenagem ao francês filósofo-historiador-linguista-sexólogo Michel Foucault (seria ele também TDAH para ter tantos hobbies e interesses?). E por falar nele cá estou eu rememorando que foi numa escola (que se parecia com uma prisão e com um hospício) que surgiu meu primeiro, meu primeiro ímpeto TDAH. O ímpeto de questionar e esmiuçar cada regra. Me fascinei pelo metro ao ouvir, da professora de português, todos os polidos impropérios dos Modernistas contra os Parnasianos. E, retrilhando os passos de Glauco Mattoso sem saber, encontrei na restrição uma proposta de liberdade e um plano de rebeldia contra a autoridade escolar. Autoridade possuída pela professora que elegia a poesia Modernista (e seus supostamente novos versos livres) como superior àquela que se expressava em sonetos. É engraçado como Mattoso e Foucault tão interessados nas relações entre palavra, controle e autoridade também sejam igualmente fascinados pelo Marquês de Sade? Sim, um bocado, principalmente quando me dou conta que também vejo-o como meu próximo de uma maneira diferente (ou não) daquela vista por Klossowski. Há um prazer em subverter a autoridade da estética hegemônica, fazer versos livres com temas caretas é comum, comum demais, agora fazer como Bocage e escrever um Soneto da dama a cagar é algo que, indubitavelmente, chama minha atenção pela transgressão de usar uma das formas mais elevadas da poética ocidental para tratar de algo que tantos entendem com chulo, abjeto e baixo. É um requinte sadeano se utilizar das regras para a transgressão e requinte este que compartilho também com Foucault e Mattoso. E regras não faltam por essas linhas, inclusive as rimas temáticas, ao longo do tecido narrativo que aqui escrevo e cada rima dessas alinhava um retalho de idéia, com um naco de estrutura formal. 

Cada escola, cada poeta, tem sua própria fortaleza e telhado de vidro que se chama estilo e o poeta de calçada Mário Quintana define brilhantemente estilo como: “Deficiência que faz com que um autor só consiga escrever como pode”. Eu, poeta sobre trilhos, escrevo à minha moda, costurando meu estilo com retalhos do que sou, a digressão exagerada, a mudança de rumo temático e narrativo, não são cacoetes de linguagem, falhas de escrita ou qualquer coisa que valha, são, a bem dizer da verdade, alguns dos meus contraintes oulipianos que aplico letra a letra neste momento pois são a forma que minha mente opera. E o que são contraintes? Serei aqui didático como um manual: são restrições que potencializam o estilo de um texto, quanto mais numerosas são essas limitações mais e mais o escritor precisa desdobrar sua linguagem para dizer o que quer sem, no entanto, desobedecer aquilo que ele se auto-impôs. O OULIPO é a tomada de consciência de que toda escrita obedece não só às regras da variação linguística na qual está inscrita, mas também a uma série de restrições criadas e obedecidas por aquele que escreve e a grande questão é se o escritor tem ou não consciência de que o faz. Mas foi o TEA que obstinadamente me levou a ser autodidata e um arqueólogo disposto à paleografia de ler o tractado de versificação de Bilac naquele mesmo português que Mattoso ainda hoje tortura seus ávidos leitores para que se aventurem numa riqueza linguística tão distinta do gosto contemporâneo. Se o tema aqui é pano as regras são as estruturas de aço que sustentam esse ensaio-camisa-de-força. Sim, eu sei, é um tanto antiquado falar de camisa-de-força numa época em que a própria luta antimanicomial já tem mais de meio século… Mas o que eu posso fazer se a poesia ainda fia sua liberdade poética na mera ausência de métrica, no verso livre que virou bandeira Modernista antiparnasiana há mais de um século inteiro?

Última batatinha, último copo de cerveja, porque já passa de meia noite e infelizmente ninguém veio me atrapalhar nesse exercício de escrita. O que eu disse neste boteco, nesta folha digital do tablet, seriam confissões, depoimentos, jogos de cena ou uma mistura do masking autista com pitadas de fingimento do poeta Pessoa? E como diria o velho humanitismo de Brás Cubas “Ao vencedor as batatas” e nesta disputa ingrata eu pacifico com o Oulipo que para desgosto dos devotos do modernismo (que nunca os leram com o devido cuidado) mesmo o poema mais liberto não escapa das regras que imprime linha após linha mesmo que não saiba o porquê de ter mudado de linha com tanto espaço ainda na folha. E para desespero dos arqueólogos que ainda desempoeiram tractados de versificação a métrica não possui o monopólio da estética poética como bem diz Mário de Andrade em seu prefácio interessantíssimo de Paulicéia Desvairada. Porém, não consigo abandonar velhos hábitos, espalhei pequenos contraintes ao longo dessas linhas que deixo como presentes para quem encontrar. Mas revelo uma: obedeço o formato de sonetos; quarteto inicial, quarteto de desenvolvimento, terceto de virada e terceto de fechamento. Aqui transpus os versos como parágrafos, usei rimas temáticas alinhavando cada um deles e deixo para o fim deste verso-parágrafo uma chave de ouro. Peço a conta, pago com as notas e moedas que ganhei no metrô, chamo o carro de aplicativo e vou para casa com minhas siglas companheiras que dizem tão pouco e tanto sobre mim.

Referências:

ANDRADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo. In: ANDRADE, Mário de. Pauliceia desvairada. São Paulo: Casa Mayença, 1922.


BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.


BILAC, Olavo. Tratado de versificação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912.


FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 10. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.


MACIEL, Cláudia; MANFRIM, Ellen Balielo; POGGI, Jádia. TEA, TDAH e outros transtornos do neurodesenvolvimento. 1. ed. Porto Alegre: Sinopsys, 2025.


MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: ______. Cultura e sociedade: um volume. Tradução de Wolfgang Leo Maar et al. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 113-146. v. 1.


MATTOSO, Glauco. O sexo do verso: ensaios de métrica e de crítica literária. São Paulo: Brasiliense, 1984.


PORTO, José; ASSUMPÇÃO JR., Francisco. Autismo no adulto. 1. ed. [S.l.]: Editora Sanar, 2023.


QUINTANA, Mário. Carta. In: QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 1996.


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