O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral —
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.
O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.
A poesia é o pai da ar
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
poesia poesia poesia poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira | | | | | | | | | | | | | | =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r: em primeiríssimo, o lugar.
poetemos pois.
torquato neto/8/11/71/&sempre.
O poema sem título iniciado pelo verso O Poeta é a mãe das armas, de Torquato Neto, escrito em 1971, apresenta-se como um exercício de experimentação formal e crítica cultural que combina recursos métricos tradicionais com rupturas radicais de ritmo, sintaxe e visualidade. Situado no contexto da poesia marginal e da contracultura dos anos 1970, o texto articula gesto lírico e dimensão política, tensionando a figura do poeta entre consagração e esvaziamento, entre a função de “mãe das armas e das Artes” e a condição de “maluco” sem lugar na estação fria de seu tempo. A análise que segue procura examinar de modo detido como as estrofes do poema operam no ritmo, no fôlego impresso em cada verso, no paralelismo semântico, na fragmentação gráfica e no jogo de vozes para construir esse campo de contradições, onde a poesia aparece tanto como arma quanto como desarme, tanto como sobrevivência quanto como risco de aniquilação.
A primeira estrofe do poema é uma septilha cuja métrica alterna versos heptassílabos ( nos versos 2, 4, 6 e 7) e octossílabos ( nos versos 1, 3 e 5.) O verso inaugural define o papel do poeta como “a mãe das armas”, em tensão com o segundo verso, que acrescenta “& das artes em geral —”. Essa estrutura poética privilegia o estranhamento e o inusitado. “O Poeta” é aqui mencionado com artigo definido e inicial maiúscula, transformando-se não em mera designação de ofício ou atividade, mas em entidade masculina que é mãe das “armas” (substantivo comum) e das “Artes” (substantivo próprio). A locução “em geral”, ao mesmo tempo, contradiz a personificação das “Artes” e ajusta-se ao sentido concreto de “armas” do verso anterior. O segundo verso termina com um travessão que, embora deslocado de sua posição habitual, anuncia a fala seguinte como a de uma outra voz do sujeito lírico. Já os versos 3 e 5 iniciam-se pela mesma interjeição de chamamento “alô,” e estabelecem um paralelismo entre poetas e malucos, ambos convocados pela mesma ordem após os dois pontos para concluírem em “poesia”. Além desse paralelismo semântico, há também um paralelismo rítmico: ambos os versos são octossílabos e seguidos por versos em redondilha maior (heptassílabos).
Há, portanto, um conjunto de pares de versos que alternam um verso de oito sílabas seguido por um de sete. A sequência desses três pares cria a expectativa de um quarto, mas a estrofe encerra-se no sétimo verso, aquele que, a princípio, deveria ser o oitavo, para que o equilíbrio entre os versos de 8 e 7 sílabas se mantivesse. A ausência desse último verso pode ser compreendida como um jogo poético que se destaca pela aproximação semântica entre o verso 6 e a execução do verso 7. O sexto verso “não tem nada a ver com os versos” alude à própria estrutura anterior de pares, que será rompida com o próximo verso. Este, ao não obedecer o padrão métrico previamente estabelecido, encerra abruptamente a estrofe, sem o oitavo verso que completaria o quarto par. No sétimo verso, observa-se ainda o uso de “muito fria” no lugar do coloquial “tão fria”, escolha que explicita a intenção do autor em preservar um esquema métrico determinado.
Nesta estrofe, há uma evocação aos poetas (ou malucos) para que se reconheçam como portadores de uma arma: a poesia. É a partir dela que poderão construir todas as Artes em geral. Há, porém, um alerta: ser poeta, fazer poesia, não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria. A época em que vivem exige armas; por isso, os poetas precisam ser convocados, chamados a essa tarefa, mesmo que sejam tomados por loucos nesta estação tão fria.
A segunda estrofe remete-se à primeira ao iniciar o verso 1 da mesma maneira da primeira estrofe mas inverte a ordem “das Artes” e “das armas” criando uma sensação de estranha familiaridade entre os versos e surpreendendo ao final do segundo verso ao substituir o travessão pelos dois pontos modificando o papel semântico do primeiro par de versos de cada uma das estrofes apesar de seu paralelismo formal. Nesta estrofe os primeiros versos atuam como uma autoridade estética que diz “quem não inventa as maneiras do corte no carnaval”. E aqui o sujeito lírico ilude o espectador ao manter o primeiro par de versos dentro do esquema de oito sílabas no primeiro verso e 7 sílabas no segundo para então encadear dois versos em redondilha em seguida para então retornar ao verso 5 com 8 sílabas que faz um paralelismo com os versos 3 e 5 da estrofe anterior porém, aqui, o “(alô, malucos)” aparece entre parêntesis, marcando assim um sussurro, um texto dito escondido como quem delata a traição que por sua vez tensiona com “da poesia” da estrofe subsequente que conclui o raciocínio que quem não inventa as maneiras do corte no carnaval, é traidor da poesia: não vale nada, é um lodal. Este último verso dessa estrofe em sextilha surpreende novamente por seu ritmo em hendecassílabo. Tal recurso condensa a taxação de não valer nada, de ser um lodal no verso mais veloz da estrofe como se fosse dito nervosamente, rapidamente o conteúdo mais belicoso.
A alternância entre a repetição e a inversão dos elementos das duas estrofes revela um jogo de espelhos que estrutura o poema: o mesmo gesto poético que funda o discurso, a criação, é também o que o nega, ao denunciar o risco da estagnação estética. O sujeito lírico, ao repetir e distorcer a forma, encena a própria tensão entre tradição e invenção, entre a ordem e o corte. O verso hendecassilábico final atua como o ápice dessa tensão, quebrando o padrão e introduzindo um ritmo de urgência que confere performatividade à crítica, o poema não apenas diz o que é ser traidor da poesia, mas demonstra, em sua métrica e sonoridade, a necessidade de reinventar o próprio ato poético.
A terceira estrofe é o ponto de maior ruptura do poema, ruptura esta anunciada no último verso da segunda estrofe. Interessante notar que tal ruptura ocorre em termos formais e semânticos pois ambas são, ao longo do poema, imiscuídas mutuamente. Aqui, na terceira estrofe, se seguem 4 versos cadenciados em redondilha, porém a cadência rítmica que formaria uma quadra clássica é transgredida pela partição das palavras em versos distintos criando tensões semânticas por meio da métrica regular que não obedece sequer a ortografia de divisão silábica demonstrando a independência do poeta das normas da gramática e da poética. Tal independência não significa de modo algum desconhecimento ou desprezo pelas mesmas, há aqui um diálogo intencional com a regra gramatical e com a tradição poética, o poema é construído de tal maneira que cada verso é um jogo linguístico no qual tradição e modernidade são tensionadas causando efeitos estéticos únicos justamente por essa alternância que cria ritimicidades próprias e inovadoras, aqui o metro é medido, contado e escandido não em favor de uma isometria, mas de uma polissemia provocada pela quebra e alternância de ritmos em momentos chaves do poema.
O primeiro verso da estrofe “A poesia é o pai da ar” deixa-se suspenso no ar numa artimanha que o sujeito lírico continua no verso seguinte “timanha de sempre: quent” que também não se completa sem o verso “ura no forno quente” que tem uma rima criada pelo capricho estético que demonstra seu domínio da versificação ao realizar uma segunda rima dessa vez com o primeiro verso da estrofe e seu último “do lado de cá, no lar” Essa falsa trova incluída numa estrofe maior tem seu sentido completado apenas no verso seguinte, o que quebra expectativa gerada pelos quatro versos em redondilha, assim como o próprio poema quebra as palavras em lugares inesperados. A métrica neste poema atua como um duplo da aplicação gramatical e da própria semântica da mensagem transmitida.
O verso 5 diminui o ritmo para 6 sílabas para depois retornar ao paralelismo no verso 6 e novamente dizer “alô, poetas: poesia!” remetendo ao terceiro verso da primeira estrofe, mas agora com uma exclamação que evoca a urgência do momento, uma exaltação do cerne de ação que o poema atribui ao poeta, o de ser o arauto da poesia.
Já o sétimo verso traz um ritmo ainda mais intenso ao se encaixar em um dodecassílabo alexandrino com uma cesura em sua sexta sílaba. O veloz verso “poesia poesia poesia poesia!” é marcado por uma tomada de fôlego entre um hemistíquio e outro. Tal tomada de fôlego, necessária nos versos longos demonstra como o ritmo ao longo dos versos atuam como reforçador semântico guiando a voz do poema como a partitura guia o ritmo de uma música.
O verso seguinte um pouco mais lento, um eneassílabo, parece evocar o verso inicial do poema com seu artigo em maiúsculo porém no lugar de uma afirmação enaltecedora do Poeta traz uma reflexão acerca do poeta que prossegue em enjambement pelos próximos versos em um ritmo que segue por alexandrino, um decassílabo e um verso que é constituído por uma redondilha seguida por uma pausa rítmica de igual tamanho como se o sujeito lírico pegasse fôlego para o verso seguinte composto pela velocidade de 14 sílabas que se emenda então num ritmo mais rápido ainda: “O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” é a mensagem em prosa desses versos? Não, pois ao dizê-los assim esvai as tensões criadas pela estrutura ritmica dos versos em questão.
O verso 8 “O poeta não se cuida ao ponto” pausa o sentido exatamente no termo ponto, cria uma polissemia entre os significados possíveis do termo ponto, indo de localidade até o seu sentido de sinal gramatical de fim de uma oração. O verso 9 “de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo” tem como núcleo central a palavra “quem” ela é a rima do último hemistíquio deste alexandrino, o que força seu sentido semântico para o centro da atenção e da tensão do verso criando aí uma evocação do perigo desse quem, figura capaz de cortar a bandeira do poeta nesta estação muito fria como dito no verso 10, verso este que reforça em capitular o MINHA trazendo uma tensão a este poeta substantivo comum que é distinto daquele Poeta metafísico das primeiras estrofes.
Este verso 10 também usa o recurso gráfico da “|” para evocar a duração da pausa maior entre versos garantindo aqui que seu tempo total seja equivalente ao verso seguinte, o 11º verso “sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” que possuí seu ritmo veloz em 14 sílabas com um hemistíquio que divide o verso em 2 partes, ambas iniciadas com a palavra “sem”numa rima interna com o “quem” do verso 9 alinhando assim o causador “quem” do corte com o resultado “sem” criando uma aproximação semântica de um quem sem aura, baúra ou nada mais para contar.
O verso 12 aqui transgride ainda mais a velocidade do poema acelerando-a a 18 sílabas em um único verso “Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a” cuja fala num só fôlego é transmitida pela ausência do r de ar tal qual a própria falta de ar causaria, assim a prescrição da métrica do verso causa na fala do mesmo o efeito que é emulado em seu registro escrito. E o verso 13 “r: em primeiríssimo, o lugar.” com suas 9 sílabas, metade do verso anterior, termina o anterior justamente como alguém que recupera o fôlego no meio da frase e completa a mesma de maneira entrecortada, sua duração em eneassílabo também indica uma pausa de fôlego após seu fim, um respiro do verso anterior que levou a capacidade pulmonar do leitor em suas últimas forças.
Em suma essa terceira estrofe funciona como uma síntese e uma catarse do poema: a forma se confunde com o próprio ato de respirar, e a métrica torna-se corpo, respiração e sentido. A progressiva aceleração rítmica até o colapso da fala (e sua consequente retomada do fôlego) traduz, em gesto poético, o limite entre criação e exaustão, entre dizer e silenciar. O poema, ao final, se converte em uma experiência fisiológica da linguagem, em que o verso não apenas comunica, mas encarna o próprio esforço da poesia para continuar existindo em meio ao asfixiamento do mundo. O “r” final, que fecha o ciclo, devolve ao leitor o ar que faltava, reconstituindo, no som e no ritmo, a presença vital da palavra poética aquela que sobrevive mesmo quando parece já não haver mais fôlego algum.
A penúltima estrofe de um único verso reduz drasticamente o ritmo do poema e “poetemos pois.” termina como uma redondilha menor dotada de ponto final. É um verso curto, de leitura lenta como quem conclui uma maratona poética, um texto que se acelera do início ao fim com alternâncias de ritmos como são os percalços da vida poética e termina de maneira compassada, na menor unidade silábica da poesia popular brasileira. E como virtuose final torquato neto assina em mais um verso de 18 sílabas seu nome, data “&sempre”. Que escrito em letra minúscula com uma métrica deliberadamente extensa e do exato mesmo tamanho do verso 12 da estrofe 3 se transforma em não só assinatura, mas também em um verso do próprio poema.
Este poema de Torquato Neto evidencia como a poesia pode simultaneamente convocar e desestabilizar, armar e desarmar, instituir e dissolver sentidos. A oscilação entre regularidade métrica e ruptura, entre o chamado enfático (“alô, poetas”) e a ironia corrosiva (“não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria”), encena a própria precariedade do lugar do poeta em tempos de repressão e desencanto. Mais do que um exercício técnico, a variação de ritmos e formas converte-se em um gesto político e estético: afirmar a potência da poesia ao mesmo tempo em que se denuncia sua fragilidade. Nesse movimento, Torquato constrói uma poética que não busca apenas sustentar tradições, mas expor o risco, o improviso e a urgência de dizer em meio ao silêncio imposto e é justamente nessa tensão que sua voz se perpetua.
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