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O autor

Lucas de Castro Lisboa, que adotou o nome artístico de Castro Lisboa e a persona pública de "poeta sobre trilhos", é um poeta, edi...

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O autor

Lucas de Castro Lisboa, que adotou o nome artístico de Castro Lisboa e a persona pública de "poeta sobre trilhos", é um poeta, editor e agitador cultural brasileiro. Sua trajetória articula escrita e ação num projeto que desafia os circuitos convencionais de circulação da arte. Herdeiro de uma tradição literária marginal que remonta a Glauco Mattoso e aos cordelistas, Lisboa opera um sincretismo peculiar: aprisiona temas da cultura pop, da política contestatória, da sexualidade dissidente e da crônica urbana nas rigorosas formas fixas do soneto e da redondilha. Seu gesto mais emblemático é a distribuição autônoma e performática de seus livretos dentro de vagões de trens e mesas de bares, tentativa de converter o espaço público em sala de leitura e questionar o confinamento da literatura aos espaços institucionais.

A poética de Lisboa constrói-se a partir de um amplo espectro de referências, transitando de modo calculado entre a alta literatura e a cultura marginal. Dessa articulação, surge uma linhagem artística pessoal e deliberadamente dissidente. Na tradição erudita, fundamenta-se na densidade metafísica de Augusto dos Anjos e na dramaticidade dos sonetos de Florbela Espanca, seus poetas de formação. Dessa base, herda o domínio da forma rigorosa, que subsequentemente trabalha para corromper e subverter. Ao se apropriar da estética parnasiana (ironicamente um alvo do Modernismo), Lisboa encontra um gesto de rebeldia peculiar: adota o preciosismo formal como um ato de contravenção estética. Na cena contemporânea, Glauco Mattoso destaca-se como uma influência central, espelhando a conciliação deliberada do soneto com temas da contracultura, como o fetichismo e a publicação independente obstinada. A essa tessitura, somam-se a irreverência e o protesto rock de Raul Seixas, assimilados na juventude, e a musicalidade narrativa do cordel e do repente, que emprestam uma cadência coloquial aos seus versos. Desse conjunto diverso de influências, Lisboa elabora uma voz distintiva, que se utiliza do ferramental clássico menos para reverenciar o passado e mais para interrogar e provocar as fissuras do presente.

Inspirado pela assertiva de Herbert Marcuse para quem "a poesia torna possível o que já se tornou impossível na prosa da realidade", Lisboa desenvolveu ao longo de sua trajetória o projeto Poeta sobre Trilhos. Iniciado em 2011, a iniciativa consiste na ocupação de vagões de trens nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro por meio da distribuição de seus livretos poéticos. Em termos quantitativos, a ação já resultou na circulação de aproximadamente 80 mil livretos e 3 mil livros. Mais do que um simples dado, esse gesto concretiza uma operação estética que funde circulação literária e ocupação do espaço público, visando atingir um público often excluded dos circuitos tradicionais do livro. Nesse contexto, a metáfora dos trilhos extrapola a noção de deslocamento físico; pode ser lida como a busca por uma poesia em constante movimento, que se insinua nos interstícios da rotina urbana. 

A produção literária de Castro Lisboa inclui obras como Sobre Máscaras e Espelhos (2012) e Poeta sobre Trilhos: Diário de Bordo (2014), nas quais se observa uma precoce articulação entre a subjetividade lírica e um olhar crítico sobre a sociedade. Em uma vertente de sua produção, é também coautor, junto com a Chef Pina Otoni, do livro Brincando de Cozinhar(2021), que explora a interseção entre gastronomia e poesia Paralelamente à carreira autoral, Lisboa atuou como editor independente na Prensa Mínima (2012-2016), iniciativa dedicada à poesia experimental, e como curador literário do projeto Poeme-se (2016-2021), onde buscou fomentar diálogos inusitados entre literatura e outras linguagens, como a moda. Essas facetas complementares – de autor, editor e curador – revelam um projeto coerente de atuação cultural que transcende a escrita solitária, investindo na criação de redes e na exploração de fronteiras entre diferentes expressões artísticas.

Sua trajetória acadêmica em Estudos Literários pela UFMG, concluída em 2024, incluiu uma pesquisa dedicada à poética de Glauco Mattoso, analisando a síntese entre concretismo e sonetismo em sua obra. Esse estudo reflete não apenas um diálogo crítico com a tradição literária, mas também a base reflexiva que sustenta sua própria produção. Na prática poética de Lisboa, críticos observam o emprego consciente de formas tradicionais,como a redondilha, de matriz popular, e o decassílabo e o alexandrino, de linhagem clássica, frequentemente tensionadas por um experimentalismo formal e uma ironia paródica. Seus poemas navegam entre o rigor métrico e os jogos de linguagem de inspiração oulipiana, convertendo restrições formais em motor de invenção. É nesse equilíbrio entre disciplina e transgressão que sua voz se consolida, articulando as esferas do acadêmico e do marginal, do erudito e do popular, do corporal e do verbal. Desse modo, Lisboa situa-se como uma das vozes significativas da poesia contemporânea, cujo trabalho explora, de maneira consistente, os limites e as possibilidades do fazer poético.

A circulação da poesia de Lisboa opera por meio de suportes diversificados e deliberadamente não convencionais: desde livretos impressos de maneira austera e cartazes de lambe-lambe até publicações em redes sociais e performances presenciais. Essa multiplicidade não é incidental, mas sim parte constitutiva de uma poética que questiona as hierarquias tradicionais entre o livro como objeto consagrado e a folha solta como veículo marginal. Para o autor, o poema é um fluxo que se materializa de diferentes formas, e o ato de distribuí-lo (seja em um vagão de trem, em um bar ou em um sarau) torna-se extensão da obra em si. Dessa forma, a experiência de leitura é frequentemente mediada pelo encontro fortuito com o texto em contextos informais, deslocando-o das prateleiras e inserindo-o diretamente no tecido da vida urbana.

Como bem sintetizou um de seus poetas de referência, Sérgio Sampaio, "Um livro de poesia na gaveta não adianta nada/ lugar de poesia é na calçada” e é nesse espírito que a prática literária de Castro Lisboa se funde inextricavelmente com sua escrita. Ao ocupar o espaço público, o “poeta sobre trilhos” tensiona a relação entre voz e ruído, corpo e mecanismo urbano. Suas leituras em vagões de trem competem com o fragor das ferrovias e os anúncios de vendedores, criando uma poética do contraste que incorpora a cacofonia da cidade como elemento estrutural. Desse modo, o ruído ambiente não é meramente um pano de fundo, mas matéria prima que se infiltra na sintaxe e no ritmo de seus versos.

Paralelamente, seu trabalho como editor e curador evidencia um compromisso com dimensões pedagógicas e comunitárias da literatura. Ao fomentar redes de circulação e espaços coletivos, Lisboa reforça a ideia de que a poesia depende não apenas da criação individual, mas também de ecossistemas de compartilhamento, posicionando-se, assim, como um articulador cultural para quem a linguagem é, antes de tudo, prática social e gesto de presença.

No campo do erotismo, Lisboa ressignifica uma tradição satírica e libertina que remonta a Gregório de Matos e Bocage, transformando-a em território de experimentação política. Seus poemas eróticos unem ludicidade e confronto, celebrando identidades dissidentes e propondo formas de prazer que desafiam enquadramentos normativos. Dessa forma, o corpo e o desejo tornam-se vetores de uma reflexão crítica sobre poder, liberdade e representação.

O trabalho de Castro Lisboa opera na fratura entre tradição e insurgência. A rigidez da forma fixa não é, em Lisboa, reverência ao passado, mas arma de subversão. O poeta arma-se da disciplina do metro para, em seguida, contaminar sua cadência com gírias urbanas, referências pop e sátiras políticas. O resultado é uma poesia que se reconhece tanto na biblioteca quanto na calçada, tanto no cânone quanto na pichação de muro. 

Em sua produção poético-visual, Lisboa explora consistentemente uma vertente de inspiração construtivista. Seu trabalho dialoga tanto com a tradição das vanguardas revolucionárias soviéticas quanto com a herança da arte concreta e neoconcreta brasileira – notadamente em referência a Hélio Oiticica, Lygia Clark e, sobretudo, Glauco Mattoso. Nessas experimentações, a espacialização da palavra opera como um gesto duplamente estético e político. Seus poemas visuais funcionam como dispositivos que tensionam os limites da página, transformando o signo gráfico em um campo de experiência sensível e crítica. Por meio de geometrias precisas, apropriação de símbolos do cotidiano – como ícones digitais, fragmentos de calendários ou estéticas de cartazes urbanos – e jogos de repetição fonética, o poeta constrói composições híbridas, entre texto e imagem, que demandam um leitor ativo e corporeamente engajado.

Longe de um formalismo vazio, essa prática constitui uma estratégia de reapropriação crítica da linguagem visual da cidade. Em poemas como EU sinto tanta a tua falta, Caminhos ou nas séries que dialogam com Não relevo o relevo e Tea ou Chá?, a página ou o cartaz tornam-se infraestruturas de significação, algo entre um mapa, uma sinalização e um circuito de circulação de ideias. O rigor compositivo, nesse contexto, adquire um caráter de militância estética: a restrição formal busca gerar legibilidade em meio ao caos urbano; a modularidade das formas facilita a reprodução e disseminação; e a iconografia familiar transforma o texto em um evento no espaço público. Dessa forma, a operação construtivista de Lisboa converte a linguagem em um artefato móvel e situado, cuja potência reside justamente em sua capacidade de intervir diretamente no tecido da cidade.

No Poetautista, revela-se a inscrição autobiográfica da diferença neurológica em forma de manifesto poético: a condição do autismo deixa de ser deficitária para se tornar potência inventiva. O poeta expõe a fragmentação, o ritmo sincopado da percepção e a lógica própria do TEA como matriz estética. Esse gesto é radicalmente político, pois desloca o campo da clínica para o da criação, do diagnóstico para a enunciação. É poesia que se assume como forma de existir, questionando a normatividade social e cultural.

Em Meditações Patafísicas, Lisboa aproxima-se do espírito jarryano ao tratar a dúvida, a fragilidade e o excesso reflexivo como matéria poética. A patafísica, ciência do particular e do imaginário, ganha corpo em versos redondilhos que ironizam a seriedade da filosofia e transmutam a hesitação em lirismo. Aqui, o poeta autista encontra eco na tradição do absurdo organizado, onde a marginalidade cognitiva é celebrada como riqueza criadora.

Com TEA ou chá?, a poesia se arma de forma épica e militante. A escolha pelas oitavas, com ressonância camoniana, torna-se dispositivo de enfrentamento político. A estrutura rígida da estrofe, tão clássica, é subvertida ao carregar conteúdos de luta, identidade e denúncia. O poema faz da forma uma armadura: o autismo, a diferença e a resistência encontram espaço no campo da epopeia, mas uma epopeia ao contrário, não de heróis míticos, e sim de sujeitos comuns que atravessam o cotidiano marcado por exclusões e preconceitos.

O diálogo com a tradição literária aparece de modo explícito no soneto Cecília Filósofa, que evoca o espírito libertino de Teresa Filósofa. Aqui, o jogo entre virtude e vício, prazer e moral, constrói um espaço ambíguo que conecta a filosofia à sensualidade, aproximando a poesia de Lisboa de uma linhagem crítica que não teme unir erudição e corpo, metafísica e desejo.

Em Poeticamente Sádico, um sonetilho em redondilha maior, a estrutura fixa é assumida como um corpo amarrado, onde a métrica e a rima funcionam como cordas que apertam e excitam o discurso. O poeta encena o prazer estético como prazer físico, erotizando o artifício formal: a rima “crava”, a escansão “geme”, e a poesia, em seu rigor, é experimentada como perversão. Aqui, a contenção da forma funciona como metáfora da contenção erótica, o gozo nasce justamente da disciplina, da limitação e do cálculo.

Já em Contando nos Dedos, um soneto em versos alexandrinos, o poeta se volta contra o próprio jogo da métrica e o regime das formas fixas. A poesia passa a reivindicar o fluxo livre, a desordem consciente, a vaidosa estética da improvisação. Ao ironizar os que “contam poema” e fazem do metro uma penitência, Lisboa tensiona a tradição: denuncia o aprisionamento da poesia à régua métrica e, ao mesmo tempo, insere sua voz no debate histórico entre o verso medido e o verso livre.

Postos lado a lado, os dois poemas compõem um projeto de autocrítica poética: no primeiro, o prazer é justamente a prisão do verso, a escansão que dói e goza; no segundo, a liberdade é proclamada contra as amarras, num gesto de rebeldia contra a “pena/penitência” da métrica. Essa oscilação revela um poeta que não se fixa em uma única estética, mas que explora os limites e paradoxos da poesia como experiência ora como sadismo formal, ora como libertação anárquica. O conjunto sugere que, em Castro Lisboa, a poesia não é apenas produção estética, mas também ensaio sobre a própria natureza do poema, onde a tensão entre forma e liberdade se converte em tema central de sua poética.

Nos poemas formais dedicados a Cecília: o Rondó e o Triolé , Lisboa retoma a tradição de Silva Alvarenga (Glaura) e do lirismo arcádico, mas não como mero exercício de pastiche. O poeta traz para dentro da forma fechada (rondó, triolé, redondilha) uma matéria erótica e contemporânea, marcada pelo pathos amoroso, pela ironia e pela consciência estética. A circularidade da forma os refrãos que retornam funciona como metáfora do vínculo amoroso e da repetição obsessiva do desejo. Aqui, a experiência amorosa se alinha à experiência autista: a repetição, longe de ser um sintoma, torna-se celebração da intensidade e do ritmo interno da vida.

Em sua produção poética, Castro Lisboa converte a tensão entre forma e liberdade em eixo central de investigação estética e política. Obras como Poetautista e TEA ou chá? transformam a neurodivergência em potência criadora, transpondo a experiência autista para o campo do manifesto poético e da epopeia contemporânea. Simultaneamente, Lisboa radicaliza tradições literárias através do erotismo subversivo (como em Cecília Filósofa e Poeticamente Sádico), onde o rigor formal sonetístico é erotizado e questionado, e da apropriação de formas fixas (rondós, triolés) para explorar a repetição como pulsação lírica e existencial. Este movimento dialético atinge seu ápice em pares poemáticos como Poeticamente Sádico e Contando nos Dedos, que encenam uma autocrítica da própria escrita: ora celebrando o prazer da restrição métrica, ora defendendo a libertação anárquica do verso. Assim, sua poesia opera como ensaio permanente sobre o fazer poético, onde o corpo, o desejo e a diferença desafiam não apenas as normas literárias, mas as próprias estruturas de regulação social.

Em seu ensaio Oralidade e Escrita, o poeta Castro Lisboa revela uma consciência literária que se articula entre história, teoria e prática, e que encontra ressonância direta em sua própria produção poética. Nele, Lisboa traça um panorama da transição da oralidade para a escrita, do verso à prosa, apontando como o ritmo, a cadência e o fôlego da fala moldaram a tradição literária desde a epopeia até as formas modernas de narrativa. Esse olhar historicista e crítico é, na verdade, um reflexo do que ele mesmo experimenta em seus poemas: uma poética que resgata o canto, o jogo métrico e a musicalidade da língua, mas tensionando-os com o contemporâneo, com a política, a ironia e o experimentalismo formal.

Enquanto o ensaio diagnostica a perda da oralidade na literatura moderna e enxerga em Guimarães Rosa ou Clarice Lispector tentativas de reintegração desse fluxo rítmico, sua poesia pratica ativamente esse retorno, ainda que por outras vias. Poemas como Poeticamente Sádico e Contando nos Dedos exploram a musicalidade das redondilhas, a repetição, a estrutura lúdica e quase performática do verso breve, em diálogo tanto com a tradição oral (do cordel, da trova, da cantoria) quanto com procedimentos de restrição e jogo poético inspirados no OULIPO. Assim, se o ensaísta enxerga no passado e em alguns modernistas a sobrevivência da oralidade, o poeta a reatualiza, convertendo o ritmo em ferramenta de crítica social, de ironia e de invenção.

A obra de Castro Lisboa configura-se como um espaço de tensão deliberada entre tradição e invenção, onde formas clássicas e impulsos contemporâneos não se anulam, mas se realimentam. Seus poemas transitam entre a cadência oral da redondilha e os procedimentos restritivos de inspiração oulipiana; entre a herança literária e a experimentação temática; entre o protesto social e a especulação patafísica. Essa oscilação reflete-se também no suporte: a página quieta e a presença corporal, o texto escrito e a voz performada. Mais do que tematizar o embate entre oralidade e escrita, Lisboa o reinscreve no próprio ato de composição, fazendo com que ritmo, respiração e som colidam com a estrutura gráfica do poema.

É nesse campo de força que o poeta opera suas transmutações características: a precariedade do transporte público torna-se matéria de experimentação estética; o desejo adquire contornos explicitamente políticos; e a neurodivergência é assumida como perspectiva inventiva geradora de formas. Ao dialogar criticamente com autores como Glauco Mattoso, Gregório de Matos e Bocage, Lisboa não os reverencia, antes os desloca e recontextualiza, inserindo-os em um projeto contemporâneo em que a poesia se faz através do gesto expansivo — seja como intervenção cultural, performance ou prática de liberdade que recusa o confinamento numa gaveta e se move em direção ao espaço compartilhado da cidade.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Meditações Patafísicas XLVII

Refletir demais
é muito perigoso

os meus olhos piscam
e sou logo espelho
frágil pra qualquer
esbarro ou porrada
quanto trinco cabe
até que estilhace

Refletir demais
é muito perigoso

em tais dúvidas
dos meus embaraços
teimo e continuo
pergunto o porquê
do que ninguém quer
ou já quis saber

Refletir demais
é muito perigoso

ilustre poeira
lustrada no vidro
no espelho mudo
guardo precioso
as minhas respostas
que jamais direi

Refletir demais
é muito perigoso

mas tenho ao menos
essa boa vantagem
uma dentre tanto
perigo e percalço
sou mesmo imune
contra raios laser

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Baccanalia

Tatuei um festejo de baco

com aqueles ques me inspiram

e agora no meu corpo tem 

Augusto dos Anjos e Florbela, 

meus primeiros poetas

descobertos bem cedo

bem marcados na dor

do meu adolescer


Tem Raul Seixas e junto

dele vem Sérgio Sampaio e

Rita Lee fazendo da música 

poesia: arranhando e arrasando 

seus lados bê e me virando

do avesso se não sabia

o que eu queria dizer 


Tem Leminski, Hilda Hilst

e Marina Colasanti  

cada qual chegado

de diferentes épocas 

pra mudar minha escrita 


Tem Quintana e Bandeira 

pra abusar do lirismo 

pra assustar o versolivrismo

e também a métrica


Tem Siba e Guimarães Rosa 

pra dizer que o como se diz

é parte do que me constrói 


Gregório de Matos tem

e du Bocage também 

meus clássicos 

Inconvenientes 

incontestes

agrestes


Tem Glauco Mattoso e 

tem Marquês de Sade  

por estética, filosofia, 

experimentalismo

descontentamento 

transgressão 

política 

e experimento 


É muita gente!

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Pragmática III

sigo pela esquerda
pois gente com fome
custa muito mais
do que seu iphone

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Remendo no lácio

a nudez duma idéia
sem acento sem memória
é uma estória sem história
um Hamlet sem sua Ophelia

sexta-feira, 25 de julho de 2025

TEA ou chá?

O que eu escuto 
ninguém mais vê 
digo um absurdo 
sou uma tevê
velha de tubo
que a sintonia
rosa é ruído
e latonia

Sou cara e soco 
não sei dizer 
em hiperfoco
ninguém me crê
um anjo azul
velho demais
meu norte é sul
de poucos ais

Fácil me cego
se pisca o led
no meu escuro
e a noite perde
meu sono e tato
num só lençol
sou eu retrato
em si bemol

O espectro ronda
meu dia após 
o frio e a onda
de calor pois
não me regulo
como convém
ou mesmo engulo
o trilho ou trem

terça-feira, 15 de julho de 2025

Aldravia 9

males
que
vem
de
trem

sexta-feira, 4 de julho de 2025

desde sempre

meninos não choram
homens não reclamam
e eu que tanto amo
que choro e tramo

um plano qualquer
de meter a colher
na sopa e na mosca
no mel e na bosta

eu acerto o errado
e tenho marcado
compasso no peito
de maior suspeito

que recusa um cais
que canta seus ais
que grita de dor
sem dono ou senhor

eu largo no estreito
recuso e aceito
e tudo confesso 
entre quadra e verso

sou novena e cio
sou seta e desvio
visto pela fresta
sou roto e poeta 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Romântico IV

Ela estende a mão, ele acha
que é pra lhe fazer carinho
mas ela só diz: me passa
minha garrafa de vinho

terça-feira, 27 de maio de 2025

Ocaso

Eu ainda me fio
na boca calada
Eu me choro e rio
num lago salgado
me perco na estrada 
e com sede me ardo
capricho no horror
por onde me for

Eu prefiro o frio
desta madrugada
Eu vou bater macio
no peito gelado
que sem saber guarda
este mal amado
e triste rancor 
regado tal flor

Eu broto no estio
da seca queimada
Eu vento vadio 
o próprio pecado
e canto a cilada
do torto e errado
sem canto de amor
vendo o sol se pôr 

terça-feira, 13 de maio de 2025

Jenipapo

Sabugo de milho
correndo atrás das crianças
não é mais verão

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sextilhas Alexandrinas

O impontual amor atrasou do metrô
eis que esquecida numa estação tão deserta
sozinha caminhou no meio da calçada
ela evitou em vão a cilada da grade
do beco e do portão, ela só não contava
com um vulto gentil, e seu vulgo? Marcelo.

Muito trabalhador disse que era ele sim
só queria companhia pra caminhada e mais nada
mas na primeira esquina uma bike vigiava
sem nada falar ou dizer dos passos deles
uma motocicleta apareceu depois e disse
somente o nome dele e com tom de deboche!

Medo, moto e motor rugiam circulares
muito olho e sem visão eram mal encarados
e procuravam por ele por ter beijado
a boca, cuja dona era do dono da
boca dessa estação de metrô, cujo amor
dela não foi buscar a tempo. Que cilada!

O vulgo protegido estava junto dela,
mas ela anjo da guarda ou mesmo guarda-costas? 
não, não queria a Cris, ou melhor: "Cristiane,
não te conheço não! Não tô contigo não!"
ele com as mãos na dela assim disse: "Não deixa
eu cá só, pois senão eles me matam mesmo!"
 
Muita moto e motor não dá mais pra fingir
muito menos fugir ou mesmo (só)correr
sai ela fina e fica o Marcelo sozinho
sem rumo corre pro lado oposto de casa
noutra esquina com Cris bem esbaforida
o amor de carro embica e Cris dali se pica

Chorava e balbuciava ela aquele seu nome
"O Marcelo, Marcelo" e quis o namorado
matar o tal rapaz, mas já tinha uma fila...
Que fim se deu Marcelo alguém será que sabe?
Cris nada sabe ou quer saber, também não quer
que o vulgo seu pé puxe assim de madrugada!

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Quatro por três

Ai que bom seria 
menos tempo no trabalho
mais tempo com a família 

terça-feira, 22 de abril de 2025

A madrugada urge

A madrugada urge 
para os que dormem
e os que fazem poesia 
procuram o verso
perfeito
antes de serem 
descobertos
pelo sol

É no silêncio soluçante da noite
que a rima encontra
o tema e encarna a trema
abolida dos dicionários

A sirene que rasga o breu
sobressalta os bebês 
a acalenta os poetas
que não se sentem sós
nessa dor de quase morte
do verso não nascido
da vida não parida
e o que mais?

O que mais nada
venenos noturnos
fim de estrada 
penúltimo verso 
e mais nada.

domingo, 20 de abril de 2025

Livro, memória tangível da humanidade

O que é o livro? O que é este objeto que há séculos permeia o cotidiano dos saberes e memórias da humanidade? Como ele surge, do que é feito e como ele afeta a própria noção de quem e como somos? Não há aqui a pretensão de responder essa e nem outras perguntas que surgirão no decorrer deste ensaio, mas sim passear pela historicidade desse objeto que torna tangível a memória, que grava a fala e seus ditos, congelando-os em seu próprio lugar no tempo e no espaço.

Segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges, o livro é um assombroso instrumento criado pelo homem para ser uma extensão de sua memória e de sua imaginação. Seu advento resulta de uma série de invenções humanas voltadas ao desejo de perenizar a memória, a criação e as formas de significar e compreender o mundo. Esse anseio por eternidade é anterior tanto ao livro quanto à escrita. Não por acaso, tantos cantos sagrados como o Gita, a Ilíada, a Odisseia e o Beowulf foram transmitidos originalmente por meio dos versos. 

A oralidade, forma primeira da comunicabilidade humana, preservou por séculos as tramas fundadoras dos povos por meio de recursos mnemônicos: a métrica e o ritmo cadenciado asseguravam que toda a cosmogonia de uma cultura fosse retida e transmitida. Antes da escrita, era a alternância marcada de sílabas átonas e tônicas, breves e longas, que sustentava a mnemonia — a memória, em grego. A escrita, inicialmente em tabuletas de barro, madeira ou pedra, depois em rolos de papiro, pergaminho e couro, e finalmente em códices, passou a substituir progressivamente o movimento da oralidade pela fixação da palavra escrita. Seria, pois o livro anterior a própria escrita? E as cadências rítmicas dos versos clássicos uma espécie de primeira forma de registro de um livro ainda que imaterial?  Ou é na gênese da escrita, inegavelmente, a origem do próprio livro, afinal sua tangibilidade, materialidade física são condições para sua perfectibilidade?

O livro ocupa um lugar singular entre os inventos do intelecto humano, pois molda a própria noção do ser, sua percepção de si mesmo e do mundo que o cerca. Segundo Vilém Flusser, em A Escrita: há futuro para a escrita?, a escrita não sofre da mutabilidade essencial da oralidade. Por isso, permite que o conceito de história seja fundado: o mito é atualizado a cada vez que é cantado, enquanto o texto, uma vez fixado, narra não apenas um enredo, mas testemunha o tempo em que foi escrito. O livro e a escrita introduzem uma nova percepção temporal: em vez da repetição cíclica dos mitos, instauram a sucessão linear dos acontecimentos. Em seu Soneto 234 Confessional, Glauco Mattoso canta: “Palavra voa, escrito permanece, / garante o adágio vindo do latim. / Escrito é que nem ódio, só envelhece.” O livro, portanto, não possui a vivacidade da voz, mas tem a eternidade como sua maior aliada — e com ela, a capacidade de registrar e atravessar o tempo. Seria essa a razão pela qual o livro é definido por sua tangibilidade? Por sua permanência ao longo do tempo se não de maneira imutável mas de uma maneira cuja sua mutabilidade possa ser percebida? Os concílios católicos que elegeram os livros canônicos são um registro de uma mutabilidade e assim distinta daquela mutabilidade do mito que se altera e alterna com o passar dos cantos de geração em geração sem que sua forma anterior tenha de fato um registro que um dia existiu.

Homero talvez fosse uma singularização dos homeridas, os aedos que, ao longo dos séculos pré-escrita, compuseram e transmitiram seus cantos até que estes fossem fixados com o advento da escrita. Por séculos, a ficção circulou em um regime em que a autoria não era relevante: só com a imprensa é que a identificação dos autores passou a ser exigida, tanto pelos dividendos quanto pela responsabilização dos conteúdos. Até então, apenas os textos dedicados à Verdade — como os sagrados, filosóficos e teológicos — exigiam autoria, pois carregavam a autoridade e o testemunho de quem os escrevia. Com a evolução da imprensa e a revolução técnico-científica, essa relação se inverteu: os textos autorais tornaram-se, em sua maioria, aqueles que os gregos chamariam de mímesis, enquanto os textos voltados à aletheia passaram a ser coletivizados. A academia moderna já não vê a mesma validade em uma única voz: no texto científico, o poder está no respaldo coletivo, na comunidade que atesta e valida o discurso. Entretanto, na contemporaneidade, aparece um novo apagamento da autoria: inteligências artificiais, fake news e a reprodutibilidade técnica tornaram banal a cópia, a mescla e a mixagem de textos e ideias de distintas fontes. A autoria já não é o centro da preocupação — assistimos, talvez, a um retorno à fluidez pré-imprensa. Se no século XX Barthes declarou a morte do autor, no século XXI o próprio conceito de autoria parece estar em perigo. 

Estaria a própria tangibilidade do livro também em perigo neste século? O livro, transformado em códigos, transcritos em bytes e projetados em uma tela de LCD é o mesmo livro que era quando escrito em papiros de juta, em pergaminhos de couro ou códices de papel em que o leitor podia percorrer com os dedos, anotar nos cantos ou até rasgar uma página que estava ali no alcance das pontas de seus dedos? Assim como o conceito de autor, a figura do leitor também se transforma ao longo da história. Nos cantos da antiguidade, a leitura era coletiva, oral, performática — e a distinção entre autor e leitor era tênue, quase inexistente. Um povo era, ao mesmo tempo, criador e transmissor de suas narrativas. Na tradição grega, o texto era entoado em público; na Idade Média, passou a ser murmurado, num sussurro entre os lábios. Apenas na modernidade a leitura silenciosa se tornou a norma, marcando o início de uma experiência íntima e individual com o livro. 

Clarice Lispector, no conto Felicidade Clandestina, sintetiza essa relação com rara precisão: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.” A leitura, na contemporaneidade, deixa de ser partilha comunitária e se torna experiência solitária e amorosa, revelando o quanto o livro passou a habitar os domínios mais profundos da subjetividade humana.  E um livro, que não pode ser mais tocado como antes na tela de um Kindle, pode garantir que a menina se transforme em mulher como descrita por Clarice? Decerto que o apego às letras digitais será distinto daquele que tocava a tinta sobre o papel e nele podia marcar com sua própria grafia, porém a mutabilidade do livro é capaz de encontrar novas maneiras de se adaptar a relação do leitor e do livro para seu constante e novo momento.

Eis que, nesse jogo temporal, surge o jugo do editor — figura que assume múltiplas formas e funções ao longo da história. Desde aqueles que primeiro fixaram os mitos em linguagem escrita, passando pelos bibliotecários de Alexandria, que uniformizaram versões divergentes de obras, elegendo as que se tornariam definitivas. Mais tarde, os membros dos concílios católicos determinaram, séculos após o surgimento das escrituras, quais livros comporiam a versão canônica da Bíblia,  No século XIX, os editores de jornais moldaram a narrativa dos romances folhetinescos, publicando-os em capítulos com vistas à venda da maior tiragem possível. Hoje, o editor se transforma novamente, é uma peça dentro da estrutura do mercado editorial de eventos como a FLIP e as Bienais do Livro, mas também lidando com os desafios impostos pelos algoritmos que governam o fluxo de textos nas redes, com base em critérios tão imperscrutáveis e obscuros quanto aqueles que condenaram como apócrifos tantos textos durante o medievo.

 Em uma sociedade ágrafa, as técnicas mnemônicas eram o único meio possível de preservar a memória coletiva. Por isso, eram reservadas às obras fundamentais — os mitos que compunham a identidade e a cosmogonia de cada povo. Nesse contexto, a predominância dos épicos era absoluta: sua forma fixa e poética, estruturada por métrica e ritmo, permitia a preservação de narrativas com centenas de versos. Com o advento da escrita, o dispêndio de recursos para conservar tais obras foi drasticamente reduzido. Já não era necessário treinar aedos por toda uma vida para garantir a sobrevivência dos textos sagrados. Ainda em versos, mas agora libertos da necessidade exclusiva de memorização, começaram a circular também as comédias, as tragédias e a poesia lírica — além, é claro, de toda a produção filosófica de seu tempo.

Com os copistas medievais, a produção e preservação de textos alcançou um novo patamar, permitindo que as cantigas populares — de escárnio, de amigo e de maldizer — também fossem registradas para além da memória oral. Mais tarde, com a evolução das técnicas de impressão, a partir dos rudimentos da xilogravura e de outras formas correlatas, uma nova revolução se instaurou. As técnicas mnemônicas, outrora essenciais, passaram a perder espaço progressivamente. Nesse novo contexto, a prosa começou a se destacar entre as grandes obras nacionais, como é o caso de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

No auge da Belle Époque, é a evolução das técnicas tipográficas que permite ao outrora sonetista Mallarmé tornar-se precursor e inspiração para diversos movimentos literários, especialmente com sua obra Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Se por séculos a poesia ocupou o lugar de gênero maior da literatura, no século XX, com o advento das máquinas offset e da impressão digital, a prosa firma sua hegemonia — um processo que o século anterior já prenunciava. Os movimentos modernistas abraçam o verso livre e sua autonomia em relação às técnicas mnemônicas, numa era marcada pela plena instauração da reprodutibilidade técnica. A popularização de novas tecnologias possibilita o surgimento de movimentos como o Concretismo e o OULIPO, que exploram os limites da linguagem por meio do domínio dos aparatos que a ciência oferece. Já o século XXI se apresenta com uma miríade de formas de fixação da memória: o livro assume formatos digitais, podem ser lidos em tablets, celulares, notebooks, e e-readers. Os textos transitam à velocidade da luz pelas redes de computadores, e os meios de publicação e produção textual tornam-se acessíveis de um modo que nenhum dos autores dos textos sagrados poderia sequer imaginar. 

As condições materiais do livro foram determinantes na transformação dos paradigmas que envolvem sua concepção, autoria, edição e recepção. À medida que as técnicas de produção, circulação e preservação da escrita evoluem, alteram-se também os modos de escrita e leitura possíveis. O estilo, a linguagem e mesmo os gêneros literários moldam-se às possibilidades e limitações oferecidas por cada suporte. Compreender a história dessas transformações técnicas é essencial para entender como a linguagem não apenas se adequa, mas se funde às materialidades de sua época, formando com elas um amálgama indissociável entre forma e matéria.

 

terça-feira, 8 de abril de 2025

Pentágono Mágico de 5⁵ cantos

Te tenho tentado
calado num riso
do certo e errado
no peito ferido
amor proclamado

Te tenho contado
medido, preciso
e cronometrado
fazendo registro
de todo passado

Te tenho cobrado
tentado teu ciso
governo e estado
valendo teu guiso
presente embalado

Te tenho marcado
por onde te piso
de faca e de fado
de dentro do ouvido
teu endiabrado

Te tenho cuidado
cuidado te aviso
quebrado no quadro
confesso mentindo
todo apaixonado 

segunda-feira, 31 de março de 2025

Por seu paladar

Resoluta, Bianca saiu de sua morada e escolheu, depois de muito procurar, o espécime pretendido entre os mais saudáveis, belos e de macia carne. A caça não era de modo algum escassa e ela também não tinha qualquer pressa. Aguardou até que o espécime ideal lhe cruzasse o caminho. O abate foi fácil, fácil demais, quase um tédio pela expectativa que tinha de antemão. Mais trabalho teve para higienizar as unhas de todos os resíduos. Mas o cheiro, o cheiro era exatamente aquele que se lembrava.

Mesmo sem o hábito não teve dificuldades para limpá-lo e separar os cortes mais nobres. Dispensou os ossos, nervos, vísceras, sebos e as partes de segunda categoria. Só lhe interessava os cortes mais nobres acondicionados, enfim, em seu refrigerador. Exceto o primeiro corte que reservou e o deixou descansar no varal de sua lavanderia. Quando retornou sorriu ao ver sua peça, escolhida com muito esmero, coberta e já semeada pelos ovos sarcófagos. 

Estava feito e ela pôde sair em busca de mais. Do mercado local trouxe legumes e hortaliças. Do empório trouxe uma especiaria eslava que sequer saberia pronunciar. Chegado o momento fatiou as cebolas roxas e brancas, rasgou o hortelã e picou o alho-poró e os pimentões amarelos, vermelhos e verdes. Do corte do varal pinçou todas as iguarias verminosas e prontas para o consumo. De um segundo corte, refrigerado, seccionou um bife de três dedos de altura, como rezavam as cartilhas dos melhores chefes internacionais.

Em fogo forte azeitou a frigideira e acrescentou dois dedos de manteiga para dar um toque francês. Então, adicionou cada item preparado, do mais sólido ao mais tenro, à frigideira apreciando cada chiado e pacientemente conduziu a reação de Maillard pois queria todo aquele contraste dourado da superficie com seu interior sanguíneo. O sol morria, vermelho, lá fora quando o tempero do leste europeu, ocre e terroso, deu o último toque. Era uma receita antiga, emanava uma fragrância que invadia todos os lares de sua vizinhança. Orgulhosa imaginava do porteiro à vizinha do andar de cima salivando por seus dotes culinários.

Finalizada a cocção, posta a mesa e servido seu prato, percebeu que sua taça repousava vazia sobre a mesa. Praguejou, irritada, por seu esquecimento do acompanhamento mais pertinente. Rangeu a cadeira, circundiu a mesa e a sala, destrancou a tetrachave, passou pela porta principal e foi, em passadas apressadas, à padaria preferida comprar coca-cola.

domingo, 30 de março de 2025

Quadrado mágico de 4⁴ cantos

Subindo a serra
num turbilhão 
que logo inverna
seu alazão 

Descendo a terra
nesse estradão 
de pé, de perna
pra ter seu pão 

Prevendo a guerra
pro seu canhão 
numa caserna
ter o quinhão 

Sabendo que erra
e tudo é vão 
sem vida eterna
e sem razão 

sexta-feira, 28 de março de 2025

300ml

Eu e minha boca,
meus pés doloridos 
Tomando uma só 
num bar de sinuca
me sinto tão só 
triste na tristeza
que não acaba nunca

terça-feira, 25 de março de 2025

Triângulo magico de 3³ cantos

Feito festa
cai o gato
na cidade

Feito lua
ladra o lobo
na floresta

Feito luto
roi o rato
no porão

domingo, 2 de março de 2025

Tragédia bibliotecária


Zelosa, ela vivia entre estantes, prateleiras e fichas catalográficas.  Piso em falso ou terremoto? Não se sabe, mas sob livros, fora soterrada, morta e coberta de razão..

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Nunca mais café

Mulher feita e dona
do próprio nariz
Disse resoluta 
que ela nunca mais
serviria café
Comprou uma chaleira

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Poetautista

Pergunto com verso
quem disse que tem
só essa ou aquela
maneira de brincar?

alinho brinquedos
como uma criança 
no chão do meu quarto 
escrevo poemas

alguns por tamanho 
outros pela cor
arestas co'arestas
rodas com os pés

meu jeito, meu verso 
brinquedos-palavras
tão inesperadas
no modo de usar

Nestas teclas


Os seus dedos
longos languidos
e angulares
eram todos
delicados
 
tão suaves
que apagavam
meus pesares
pensamentos
singulares

poética
em seus sons
e meus sonhos
os seus dedos
sobre mim

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Djeina

quase dói 
quando sinto
não me sento
no banheiro
porque tenho
medo do eco
desta lágrima
nesta chuva 
no chuveiro

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

SteamPunk Fantasy em cinco palavras

 Raivosas ovelhas luditas quebram teares.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Sem fingir costume

Mote: “escovar a história a contrapelo” Walter Benjamin

Atento, com olhos semiabertos,
como quem penteia a memória 
o filósofo cata os piolhos
das verdades meias e inteiras

Entre ser monge ou barbeiro
hábito e manto contra pelos 
Entre o padre e a prostituta 
há seus pedidos de joelhos

A cada deus, a própria prece
que sonha com seu paraíso
profano, divino ou terrestre
cada qual feito por um juízo 

O sagrado só o é entre aqueles 
que comungam da mesma fé
seus segredos, seus votos, são 
pros devotos e nada mais 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Quanto vale a poesia?

Pode me propor:
moeda, pix, nota...
o importante é a troca
e não o valor!

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Duplo trocadilho

Um pinguim
de cartola 
sobre minha 
geladeira

domingo, 22 de dezembro de 2024

sobre a brevidade da vida

Vá se foder Sêneca
a vida é uma vadia
uma vadia escrota
que para a punheta
que você não pediu
antes de você gozar

sábado, 21 de dezembro de 2024

Defeso, denegado e dissuadido

Da cobertura do arranha-céu, entre cédulas, títulos e debêntures, o CEO, abatido, caiu direto na calçada. 

De terno e gravata, causou espanto estatelado no chão.  Sirenes, viaturas, cordão de isolamento e fechamento do ano fiscal.

Dispensado o socorro, estava morto e aferido o lucro e o dividendo, afinal, óbito também é alta.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Vaidade

melhor um fracasso
retumbante do que 
sucesso qualquer
só e silencioso?

terça-feira, 12 de novembro de 2024

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Aldravia Baudeleriana

Igualmente 
Embriagam
Vinho
Vício
Verso
Virtude

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

QUADRILHA MEXICO-SOVIETICA

Diego amava Rivera
que amava Kahlo
que amava Chavela 
que amava Frida
que amava Trotsky 
que amava Sheridan
que amava Leon 
que amava Sedova
que era revolucionária também.

Rivera foi para os Estados Unidos, 
Sheridan foi exilada,
Frida sofreu de desastre, 
Kahlo casou-se com Diego,
foi amante de Leon e Chavela, 
que tornou-se alcoólatra,
Sedova casou com Trotsky 
morto por J. Ramón Mercader
que ainda não tinha entrado pra história.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Tropicália concreta

cintilava a lua
quando o cão caetaneava
o guarda de mijo

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

riacho

satisfeita a velha

lava o lençol da donzela

sangue e primavera 

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Veneno antigo

Esse frasco de cicuta

são as promessas que fiz

pra mim mesmo sem saber

que matariam devagar 

meu eu, meu sonho e sentido

pouco bem pouco por vez


Não sei se sei dizer quantas 

promessas ainda carrego

por zelo como amuletos.

   Quebro com carinho,

   dos cacos faço um mosaico 

   pra luz entrar sem perigo 


Não sei dizer porquê ainda honro

e prossigo na vingança

silenciosa contra meu passado

   Quebro, enfim, a caixa preta

   e hasteio bandeira branca

   pra mim pois não há inimigos


Eu sei bem daquelas tantas,

que jurei só com meu pranto,

por dores hoje esquecidas

   Quebro em silêncio e grito 

   o que me prende ou afasta 

   do meu sonho e meu sentido


Dos crimes sem ser culpado 

carrego essas juras cúmplice

e penitente as mantenho

   Quebro essas minhas correntes

   Com o formão e o martelo

   pra esculpir a liberdade 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Sinto

o gosto o cheiro das uvas
o tonteio e o embaraço 
Ah! como lhe quero rubra
e nua dentre meus braços

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Prelúdio

Remido fasol mido
Remido sol famido 
Resolmi do lafami
do lafami resolmi

Si solre do famisol
Si solre do mifasol
Remido fa ladomi
Refado mi soldomi

A pianista dizia
no mifasol domi todo
amor ladomi que sentia 

e o poeta remido 
Solfejava em redondilha 
de do re mi até do

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Poeta Sobre Trilhos

sim senhor doutor 
minha terapia
é ir pro metrô 
vender poesia

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Haicai Xadrez Zoológico

ocaso ecocida

morrem os grandes felinos

de gripe aviária

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

História dos livretos Poeta Sobre Trilhos

São 31 edições, trinta e um livretos do Poeta Sobre Trilhos. São livretos que produzo desde 2011 e levo nos vagões de trens e metrôs do Brasil. Comecei, é verdade, no Rio de Janeiro, saindo de Caxias até Bonsucesso, onde pegava o expresso para a Ilha do Fundão, mas já fiz incursões no metrô paulistano, saindo da estação Tietê até baldear na estação da Luz e ir para São Cristóvão. Hoje, de volta aos meus belos horizontes, vou da Vilarinho até o Eldorado.

São muitos os caminhos que já percorri sobre trilhos, levando poesia, levando meus versos para tanta gente que não sabia que gostava do prazer que um poema pode nos dar. Minhas primeiras edições se chamavam "Sr. Personna, o que trazes pra mim?" Eu imprimia, xerocava, dobrava e grampeava um por um, fazendo em levas de 20, depois 50, depois 100, depois 200, até que comecei a mandar para a gráfica fazer seus 1.000, depois 2.000, ainda em preto e branco e papel sulfite.

Mas dei um salto quando consegui um lugar para fazer mais barato, colorido e com tiragem de 2.500 exemplares na edição 13, que então em seguida foi rebatizado de Poeta Sobre Trilhos, já no ano de 2012. Com esse novo formato, fiquei por muitas e muitas edições coloridas, em papel couchê e produção industrial. Até a edição 28, em 2016, quando caí em depressão e diminui meu ritmo, fazendo a edição 29 em 2017 e a edição 30 em 2019.

Veio então a pandemia, e com ela deixei definitivamente o Rio de Janeiro. Voltei aos belos horizontes em 2020 e toquei meus dias longe dos trilhos por quatro anos.

Em 2024, sentia um vazio no peito, sentia falta de algo, e esse algo não era só escrever, pois continuei nesses anos todos alimentando meu blog srpersonna.com.br com poemas, crônicas, contos e ensaios. Esse algo era o prazer de ver o leitor me lendo à minha frente, mostrando seu poema favorito para outro leitor ao seu lado, declamando meus versos para a namorada e até se emocionando com o que lia.

Fiz então a edição número 31, que, 13 anos após a primeira, me deu um sopro de vida e propósito, me encheu o depósito de lirismo e esperança que andava tão vazio em mim. Ter de volta esse contato íntimo com o leitor me fez mais vivo, me inspirou e conseguiu me tirar de um luto que parecia não ter fim.

Sinto que o bem que eu faço para os leitores não é maior do que o bem que eles fazem por mim. O importante não é o dinheiro, é essa troca íntima e confidente que poucos artistas têm acesso, entre o público real e o poeta. Só quero agradecer por estar de volta como Poeta Sobre Trilhos; esse é meu lugar, de onde eu nunca deveria ter saído.

domingo, 6 de outubro de 2024

Haiquase carente

Sem seu cabelo

amadrugada é longa

como travesseiro

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

segunda sem motivo


SEGUNDA SEM MOTIVO
ME MOVO MEIO MANCO
E TRISTE TOMO CAFÉ
SEM AÇÚCAR SEM SAL
O PÃO ME ACOMPANHA
MURCHO SEM RECHEIO
E NO MEIO ME FALTA
UM POUCO BEM POUCO
DE TUDO QUE ME RIO
DOU ADEUS PRA CAMA
LONGUÍSSIMA SEMANA
NUMA MESMA CAPITAL
DONDE NASCI E IREI
MORRER DIA DE CADA
VEZ QUE PASSO NUMA
PRESSA SEM PROSEAR
SEM NEM SEQUER VER
QUE RAIA NOSSO SOL
ENTRE FUMAÇA PRETA
E TRÂNSITO CAÓTICO
TRABALHO E ESPALHO
MEU RESTO DE FORÇA
QUE ME RENEGA ESSA
SEGUNDA SEM MOTIVO

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O belo como moldura da violência

A arte deixou de ter seu sentido latino de técnica; porém, ainda é comum vermos todo artista e sua obra como um exemplar indissociável da Areté grega, como um exemplo do ápice do humano. Os padrões rígidos do que é arte se dissolveram e, hoje, Arte é a moldura na qual canonizamos o artista.

A arte é moldura, ou seja, aquilo que, através do uso discursivo, classificamos como produção artística, a despeito da técnica. É na moldura que consideramos a intencionalidade do sujeito quando o mesmo se enquadra em nosso construto de sujeito ocidental, branco, neurotípico e cristão, e o ignoramos quando desviante.

A moldura da arte cai bem para os quadros em série feitos sob encomenda para as galerias, os livros em série para serem bestsellers, a escultura sob subvenção pública a despeito do público. E também é arte o que consideramos belo, a despeito do que o sujeito desviante pensa sobre seu próprio trabalho.

Porém, o belo não é monopólio da arte, e muito menos seu objeto central. Quando, atraídos pelo belo, chamamos de arte o sagrado dos povos originários ou a profissão de fé de um homem preso por sua própria mente e também pelo Estado, estamos cometendo uma violência contra a autonomia desses sujeitos, cujas obras de inegável beleza não possuem a intencionalidade de serem arte. É uma violência simbólica dissociar esses objetos de seu uso para atender a um discurso alheio aos sujeitos e assim emoldurá-los como arte.

Ademais, desprezamos a arte que não possui o predicado de belo quando concebida pelos sujeitos à margem da moldura discursiva padrão. Quando o desviante ofende o senso estético de quem dita ao que se deve conceder a moldura de arte, temos outra violência, que nega novamente a autonomia do sujeito e de seu entorno, que percebem como arte o que fazem e vivem.

Entretanto, a moldura de arte é apressadamente posta em um objeto que, mesmo carecendo de técnica ou empenho estético, é produzido por um sujeito elencado como digno da Areté para o nosso discurso ocidental contemporâneo. Há aqui uma culpa de séculos, pois essa cultura chamou de lixo a arte de Van Gogh e, por isso, hoje chama de arte qualquer lixo produzido pelo sujeito adequado, para não se comprometer com as gerações futuras.

O zine de poesia "independente", a música "experimental" e o quadro "indecifrável" são obras igualmente criticáveis, independentemente de seu autor ser do morro ou do asfalto. Criticar um poema, ou pior, criticar um poeta tornou-se uma espécie de pecado capital. Não entender um poema ou deixar de aplaudir uma produção medíocre idem. Não há espaço para se preocupar com a forma, com o estilo; somente importa o que se faz sentir, o que provoca e encanta.

Parafraseando Gertrude Stein: um lixo é um lixo é um lixo é um lixo, e é preciso ter coragem de dizê-lo. É preciso ferir o Narciso de cada artista emoldurado, assim como é necessário quebrar a moldura que violenta o sujeito e sua obra, que são autônomos ao próprio conceito de arte ocidental, ou roubar as molduras para as artes que são marginalizadas.

Devolvamos as açoiabas aos Tupinambás, devolvamos os estandartes do Bispo do Rosário e botemos toda a arte para reciclar suas obras, artistas, molduras e conceitos, pois a arte merece mais que ser crivada como comércio ou desculpa para culpas passadas.

domingo, 15 de setembro de 2024

Xepa


Sempre fui da xepa da promoção e da pechincha, comprei meu coração na barraca de um e noventa e nove.

Porém meu peito e pulmão, pobres e expropriados, fizeram fiado.   Eles penduraram a conta pra minha garganta pagar sob protestos.

Por solidariedade a boca fez greve não queria o novo e vermelho inquilino: piquete montado, dentes  trincados...

Mas a mão furou, pelega, não era de esquerda. Furado o piquete o coração caiu na barriga, burguesa, de tão gorda se fez de sonsa e não quis devolver, foi briga das feias, minhas velhas veias tiveram que intervir:

GREVE GERAL e o general da cabeça, prefeito não eleito do meu corpo, entrou em febre, uma convulsão social. Reintegração de posse, biles, vômito e rebordose, mitocôndrias em pânico ouviam a internacional!

Eu feito latifúndio improdutivo, fui numa noite  tomado por uma princesa  socialista, que encampou meu corpo, pôs meu coração no peito, deu um jeito nos grevistas e botou de regime minha barriga.

E todos, em todas as partes, pedaços, ossos,    órgãos,     células,   culturas    bacterianas   e   tártaros superbacanas  puseram abaixo a superestrutura.

Era a revolução e de agora em diante. Todos, todos, teriam o direito Inalienável ao pão,  à poesia e, é claro, aos beijos dela.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

domingo, 8 de setembro de 2024

Écfrase Alexandrina

Eu tô com cara de poeta vagabundo?
Justo! Não quero jamais confundir meu público:
cabelo bagunçado e cavanhaque inculto
aro redondo pros olhos e peito impúdico.

Pelo espelho destaca o gosto tatuando
em minha perna eis coxa eis ninfa e sátiro
dançando na gravura indecente prum culto 
a Dionísio que logo acima sobe ao púlpito 

No braço como num abraço meus asseclas
sacerdotes se brindam num banquete eterno 
Glauco, Hilst, Leminski, Augusto, Rosa e Siba

Colasanti, Matos, Lee, Quintana, Sergio, Sade
e o satírico Raul completam num bom termo
a volta feita na foto deste poeta 

sábado, 31 de agosto de 2024

Coreto liberdade

sussurra a voz rouca
não fique sozinha, 
com essas garrafas, 
de vinhos sem safras. 

sua linda boca, 
que não é só minha, 
beija o corpo meu, 
que não é só seu.


Belo Horizonte, Julho de 2002

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Cyberpunk em 5 palavras:

I)
Implantaram um coração num Bilionário 

II)
Porcos corporativos dão melhores hambúrgueres 

III)
Televangelista enforcado nas tripas corporativas

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Vestido azul

 Quero dedilhar meus dedos
quero-os em ti mergulhados
Nadando dum lado ao outro 
no seu mar e rio revoltos

Quero ser abocanhado
pouco a pouco degustado
pelos seus lábios a postos
pra provar-me todos gostos

Em riste rijo te rasgo 
esse poema devasso
essa cantiga perversa 

Pois me inspira quando pira
quando arfa, rosna, delira,
devora (ou vice e versa)

domingo, 25 de agosto de 2024

Poeta,

por favor,

só empilhar

palavras

não se faz

poesia.


sua prosa,

na vertical,

não se vira

um poema

só por isso.


não só leia,

ouça a voz

fale escute

o seu ritmo

verso é som


por favor,

só empilhar

palavras

não se faz

poesia.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Sci-fi em 5 palavras:

I)

no céu a terra cintilava


II)

pálido ponto azul, nunca mais 


III)

Rápido, siga aquele táxi voador! 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Dos delírios e deleites

paciente pela florada,
de lírios e copos de leite,
ele, dia a dia, regava,
gentil, os seios da amada
com o seu sêmen e saliva...