Inspirado pela assertiva de Herbert Marcuse para quem "a poesia torna possível o que já se tornou impossível na prosa da realidade", Lisboa desenvolveu ao longo de sua trajetória o projeto Poeta sobre Trilhos. Iniciado em 2011, a iniciativa consiste na ocupação de vagões de trens nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro por meio da distribuição de seus livretos poéticos. Em termos quantitativos, a ação já resultou na circulação de aproximadamente 80 mil livretos e 3 mil livros. Mais do que um simples dado, esse gesto concretiza uma operação estética que funde circulação literária e ocupação do espaço público, visando atingir um público often excluded dos circuitos tradicionais do livro. Nesse contexto, a metáfora dos trilhos extrapola a noção de deslocamento físico; pode ser lida como a busca por uma poesia em constante movimento, que se insinua nos interstícios da rotina urbana.
A produção literária de Castro Lisboa inclui obras como Sobre Máscaras e Espelhos (2012) e Poeta sobre Trilhos: Diário de Bordo (2014), nas quais se observa uma precoce articulação entre a subjetividade lírica e um olhar crítico sobre a sociedade. Em uma vertente de sua produção, é também coautor, junto com a Chef Pina Otoni, do livro Brincando de Cozinhar(2021), que explora a interseção entre gastronomia e poesia Paralelamente à carreira autoral, Lisboa atuou como editor independente na Prensa Mínima (2012-2016), iniciativa dedicada à poesia experimental, e como curador literário do projeto Poeme-se (2016-2021), onde buscou fomentar diálogos inusitados entre literatura e outras linguagens, como a moda. Essas facetas complementares – de autor, editor e curador – revelam um projeto coerente de atuação cultural que transcende a escrita solitária, investindo na criação de redes e na exploração de fronteiras entre diferentes expressões artísticas.
Sua trajetória acadêmica em Estudos Literários pela UFMG, concluída em 2024, incluiu uma pesquisa dedicada à poética de Glauco Mattoso, analisando a síntese entre concretismo e sonetismo em sua obra. Esse estudo reflete não apenas um diálogo crítico com a tradição literária, mas também a base reflexiva que sustenta sua própria produção. Na prática poética de Lisboa, críticos observam o emprego consciente de formas tradicionais,como a redondilha, de matriz popular, e o decassílabo e o alexandrino, de linhagem clássica, frequentemente tensionadas por um experimentalismo formal e uma ironia paródica. Seus poemas navegam entre o rigor métrico e os jogos de linguagem de inspiração oulipiana, convertendo restrições formais em motor de invenção. É nesse equilíbrio entre disciplina e transgressão que sua voz se consolida, articulando as esferas do acadêmico e do marginal, do erudito e do popular, do corporal e do verbal. Desse modo, Lisboa situa-se como uma das vozes significativas da poesia contemporânea, cujo trabalho explora, de maneira consistente, os limites e as possibilidades do fazer poético.
A circulação da poesia de Lisboa opera por meio de suportes diversificados e deliberadamente não convencionais: desde livretos impressos de maneira austera e cartazes de lambe-lambe até publicações em redes sociais e performances presenciais. Essa multiplicidade não é incidental, mas sim parte constitutiva de uma poética que questiona as hierarquias tradicionais entre o livro como objeto consagrado e a folha solta como veículo marginal. Para o autor, o poema é um fluxo que se materializa de diferentes formas, e o ato de distribuí-lo (seja em um vagão de trem, em um bar ou em um sarau) torna-se extensão da obra em si. Dessa forma, a experiência de leitura é frequentemente mediada pelo encontro fortuito com o texto em contextos informais, deslocando-o das prateleiras e inserindo-o diretamente no tecido da vida urbana.
Como bem sintetizou um de seus poetas de referência, Sérgio Sampaio, "Um livro de poesia na gaveta não adianta nada/ lugar de poesia é na calçada” e é nesse espírito que a prática literária de Castro Lisboa se funde inextricavelmente com sua escrita. Ao ocupar o espaço público, o “poeta sobre trilhos” tensiona a relação entre voz e ruído, corpo e mecanismo urbano. Suas leituras em vagões de trem competem com o fragor das ferrovias e os anúncios de vendedores, criando uma poética do contraste que incorpora a cacofonia da cidade como elemento estrutural. Desse modo, o ruído ambiente não é meramente um pano de fundo, mas matéria prima que se infiltra na sintaxe e no ritmo de seus versos.
Paralelamente, seu trabalho como editor e curador evidencia um compromisso com dimensões pedagógicas e comunitárias da literatura. Ao fomentar redes de circulação e espaços coletivos, Lisboa reforça a ideia de que a poesia depende não apenas da criação individual, mas também de ecossistemas de compartilhamento, posicionando-se, assim, como um articulador cultural para quem a linguagem é, antes de tudo, prática social e gesto de presença.
No campo do erotismo, Lisboa ressignifica uma tradição satírica e libertina que remonta a Gregório de Matos e Bocage, transformando-a em território de experimentação política. Seus poemas eróticos unem ludicidade e confronto, celebrando identidades dissidentes e propondo formas de prazer que desafiam enquadramentos normativos. Dessa forma, o corpo e o desejo tornam-se vetores de uma reflexão crítica sobre poder, liberdade e representação.
O trabalho de Castro Lisboa opera na fratura entre tradição e insurgência. A rigidez da forma fixa não é, em Lisboa, reverência ao passado, mas arma de subversão. O poeta arma-se da disciplina do metro para, em seguida, contaminar sua cadência com gírias urbanas, referências pop e sátiras políticas. O resultado é uma poesia que se reconhece tanto na biblioteca quanto na calçada, tanto no cânone quanto na pichação de muro.
Em sua produção poético-visual, Lisboa explora consistentemente uma vertente de inspiração construtivista. Seu trabalho dialoga tanto com a tradição das vanguardas revolucionárias soviéticas quanto com a herança da arte concreta e neoconcreta brasileira – notadamente em referência a Hélio Oiticica, Lygia Clark e, sobretudo, Glauco Mattoso. Nessas experimentações, a espacialização da palavra opera como um gesto duplamente estético e político. Seus poemas visuais funcionam como dispositivos que tensionam os limites da página, transformando o signo gráfico em um campo de experiência sensível e crítica. Por meio de geometrias precisas, apropriação de símbolos do cotidiano – como ícones digitais, fragmentos de calendários ou estéticas de cartazes urbanos – e jogos de repetição fonética, o poeta constrói composições híbridas, entre texto e imagem, que demandam um leitor ativo e corporeamente engajado.
Longe de um formalismo vazio, essa prática constitui uma estratégia de reapropriação crítica da linguagem visual da cidade. Em poemas como EU sinto tanta a tua falta, Caminhos ou nas séries que dialogam com Não relevo o relevo e Tea ou Chá?, a página ou o cartaz tornam-se infraestruturas de significação, algo entre um mapa, uma sinalização e um circuito de circulação de ideias. O rigor compositivo, nesse contexto, adquire um caráter de militância estética: a restrição formal busca gerar legibilidade em meio ao caos urbano; a modularidade das formas facilita a reprodução e disseminação; e a iconografia familiar transforma o texto em um evento no espaço público. Dessa forma, a operação construtivista de Lisboa converte a linguagem em um artefato móvel e situado, cuja potência reside justamente em sua capacidade de intervir diretamente no tecido da cidade.
No Poetautista, revela-se a inscrição autobiográfica da diferença neurológica em forma de manifesto poético: a condição do autismo deixa de ser deficitária para se tornar potência inventiva. O poeta expõe a fragmentação, o ritmo sincopado da percepção e a lógica própria do TEA como matriz estética. Esse gesto é radicalmente político, pois desloca o campo da clínica para o da criação, do diagnóstico para a enunciação. É poesia que se assume como forma de existir, questionando a normatividade social e cultural.
Em Meditações Patafísicas, Lisboa aproxima-se do espírito jarryano ao tratar a dúvida, a fragilidade e o excesso reflexivo como matéria poética. A patafísica, ciência do particular e do imaginário, ganha corpo em versos redondilhos que ironizam a seriedade da filosofia e transmutam a hesitação em lirismo. Aqui, o poeta autista encontra eco na tradição do absurdo organizado, onde a marginalidade cognitiva é celebrada como riqueza criadora.
Com TEA ou chá?, a poesia se arma de forma épica e militante. A escolha pelas oitavas, com ressonância camoniana, torna-se dispositivo de enfrentamento político. A estrutura rígida da estrofe, tão clássica, é subvertida ao carregar conteúdos de luta, identidade e denúncia. O poema faz da forma uma armadura: o autismo, a diferença e a resistência encontram espaço no campo da epopeia, mas uma epopeia ao contrário, não de heróis míticos, e sim de sujeitos comuns que atravessam o cotidiano marcado por exclusões e preconceitos.
O diálogo com a tradição literária aparece de modo explícito no soneto Cecília Filósofa, que evoca o espírito libertino de Teresa Filósofa. Aqui, o jogo entre virtude e vício, prazer e moral, constrói um espaço ambíguo que conecta a filosofia à sensualidade, aproximando a poesia de Lisboa de uma linhagem crítica que não teme unir erudição e corpo, metafísica e desejo.
Em Poeticamente Sádico, um sonetilho em redondilha maior, a estrutura fixa é assumida como um corpo amarrado, onde a métrica e a rima funcionam como cordas que apertam e excitam o discurso. O poeta encena o prazer estético como prazer físico, erotizando o artifício formal: a rima “crava”, a escansão “geme”, e a poesia, em seu rigor, é experimentada como perversão. Aqui, a contenção da forma funciona como metáfora da contenção erótica, o gozo nasce justamente da disciplina, da limitação e do cálculo.
Já em Contando nos Dedos, um soneto em versos alexandrinos, o poeta se volta contra o próprio jogo da métrica e o regime das formas fixas. A poesia passa a reivindicar o fluxo livre, a desordem consciente, a vaidosa estética da improvisação. Ao ironizar os que “contam poema” e fazem do metro uma penitência, Lisboa tensiona a tradição: denuncia o aprisionamento da poesia à régua métrica e, ao mesmo tempo, insere sua voz no debate histórico entre o verso medido e o verso livre.
Postos lado a lado, os dois poemas compõem um projeto de autocrítica poética: no primeiro, o prazer é justamente a prisão do verso, a escansão que dói e goza; no segundo, a liberdade é proclamada contra as amarras, num gesto de rebeldia contra a “pena/penitência” da métrica. Essa oscilação revela um poeta que não se fixa em uma única estética, mas que explora os limites e paradoxos da poesia como experiência ora como sadismo formal, ora como libertação anárquica. O conjunto sugere que, em Castro Lisboa, a poesia não é apenas produção estética, mas também ensaio sobre a própria natureza do poema, onde a tensão entre forma e liberdade se converte em tema central de sua poética.
Nos poemas formais dedicados a Cecília: o Rondó e o Triolé , Lisboa retoma a tradição de Silva Alvarenga (Glaura) e do lirismo arcádico, mas não como mero exercício de pastiche. O poeta traz para dentro da forma fechada (rondó, triolé, redondilha) uma matéria erótica e contemporânea, marcada pelo pathos amoroso, pela ironia e pela consciência estética. A circularidade da forma os refrãos que retornam funciona como metáfora do vínculo amoroso e da repetição obsessiva do desejo. Aqui, a experiência amorosa se alinha à experiência autista: a repetição, longe de ser um sintoma, torna-se celebração da intensidade e do ritmo interno da vida.
Em sua produção poética, Castro Lisboa converte a tensão entre forma e liberdade em eixo central de investigação estética e política. Obras como Poetautista e TEA ou chá? transformam a neurodivergência em potência criadora, transpondo a experiência autista para o campo do manifesto poético e da epopeia contemporânea. Simultaneamente, Lisboa radicaliza tradições literárias através do erotismo subversivo (como em Cecília Filósofa e Poeticamente Sádico), onde o rigor formal sonetístico é erotizado e questionado, e da apropriação de formas fixas (rondós, triolés) para explorar a repetição como pulsação lírica e existencial. Este movimento dialético atinge seu ápice em pares poemáticos como Poeticamente Sádico e Contando nos Dedos, que encenam uma autocrítica da própria escrita: ora celebrando o prazer da restrição métrica, ora defendendo a libertação anárquica do verso. Assim, sua poesia opera como ensaio permanente sobre o fazer poético, onde o corpo, o desejo e a diferença desafiam não apenas as normas literárias, mas as próprias estruturas de regulação social.
Em seu ensaio Oralidade e Escrita, o poeta Castro Lisboa revela uma consciência literária que se articula entre história, teoria e prática, e que encontra ressonância direta em sua própria produção poética. Nele, Lisboa traça um panorama da transição da oralidade para a escrita, do verso à prosa, apontando como o ritmo, a cadência e o fôlego da fala moldaram a tradição literária desde a epopeia até as formas modernas de narrativa. Esse olhar historicista e crítico é, na verdade, um reflexo do que ele mesmo experimenta em seus poemas: uma poética que resgata o canto, o jogo métrico e a musicalidade da língua, mas tensionando-os com o contemporâneo, com a política, a ironia e o experimentalismo formal.
Enquanto o ensaio diagnostica a perda da oralidade na literatura moderna e enxerga em Guimarães Rosa ou Clarice Lispector tentativas de reintegração desse fluxo rítmico, sua poesia pratica ativamente esse retorno, ainda que por outras vias. Poemas como Poeticamente Sádico e Contando nos Dedos exploram a musicalidade das redondilhas, a repetição, a estrutura lúdica e quase performática do verso breve, em diálogo tanto com a tradição oral (do cordel, da trova, da cantoria) quanto com procedimentos de restrição e jogo poético inspirados no OULIPO. Assim, se o ensaísta enxerga no passado e em alguns modernistas a sobrevivência da oralidade, o poeta a reatualiza, convertendo o ritmo em ferramenta de crítica social, de ironia e de invenção.