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Lucas de Castro Lisboa, que adotou o nome artístico de Castro Lisboa e a persona pública de "poeta sobre trilhos", é um poeta, edi...

terça-feira, 11 de novembro de 2025

banquete de bar

noturno poeta faminto

serve-se à mesa amarela

duma pimenta caseira

derramada por três batatas

e na meia almôndega

 de jiló


segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Salve sua Saliva

feliz eu lhe vi
dançando no vinho 
e contra a parede 
marcando compasso
numa sombra atriz
com seta e caminho
não perdeu no pé 
seu rastro e passo

gota de saliva 
cai pairando no ar
derrama no drink 
com sabor de asfalto

como quem não quer
lhe ver mais sozinho
sua sombra veio
no vão e no espaço
entre pista e palco 
passou de fininho
pela minha sombra 
quieta no terraço

gota de saliva 
cai pairando no ar
derrama no drink 
com sabor de asfalto

entre amor, sonhar,
me deu a ressaca 
no mar de gin
calor ou trepar
meu coração eu 
calo num assalto
pois os seus olhos 
cortaram meu sim 

gota de saliva 
cai pairando no ar
derrama no drink 
com sabor de asfalto

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Poetautista

 

Genealogia num copo de cerveja.

Estaciono o carro no canteiro central, fecho os vidros, tiro o cinto de segurança, abro a porta, saio, fecho a porta e aciono o alarme da chave três vezes só por garantia (e porque gosto do som ritmado quando toco a segunda e a terceira vez no botão de trancar a porta). Uma cerveja, um copo, uma almôndega de jiló e quatro batatinhas. O garçom me trás sem que eu sequer peça, sou um cliente regular, como também é regular a variedade do público que aqui se senta, velhos boêmios, operários de escritório do centro, comunidade LGBTQIAPN+ e estudantes universitários: de humanas, desumanas, biológicas e alguns poucos de exatas. Depois de uma noite nos vagões do metrô levando poesia em cada trem como o Poeta Sobre Trilhos, cá estou eu no Del Ruim (bar de boa música e ótima estufa aqui na avenida Augusto de Lima no centro de Belo Horizonte) e, entre um gole e uma mordida,  paro e penso como sou inadequado por pensar em poesia e escrever sozinho, olhando para cada mesa e mensurando se ali estão neurotípicos ou neurodivergentes como eu. Quais são? Quais definitivamente não são? Posso dizer, palpitar e até chutar comigo mesmo as respostas numa tentativa de driblar a minha solidão. Meu maior logro é que trago meu tablet e, entre um trago e outro, me ponho a escrever minhas digressões e impressões. 

Tem suas vantagens frequentar o mesmo bar, pedir a mesma porção e bebida ao fim de toda noite como um relógio, mas eu não sou Kant que caminhava todos os dias na mesma hora e no mesmo percurso, regularíssimo, sou infiel aos bares que frequento e descompassado com os relógios que uso em cada braço. Uma de minhas idiossincrasias é amar experimentar novos lugares e novos sabores, o faço com rigor, avalio a temperatura da cerveja, o tempero e criatividade da estufa, a variedade do público que o frequenta. Gosto do clima de bar. Sento, desde pequeno, em bares com meu pai e seus amigos. Ele me contava sobre administração de empresas, marcenaria, negócios, instalações elétricas e política, muita política de uma família ligada às disputas do interior de Minas Gerais, não àquela dos coronéis, e sim aquela feita pela comunidade, política de minha vó que fazia piquetes na estrada, brigava por atendimento médico, comida e educação, no meio do Vale do Jequitinhonha, em um lugarejo perdido chamado Jenipapo de Minas. E como Minas são muitas, também eram muitas as habilidades de minha avó, parteira, médica prática, agricultora, gerente dos correios, produtora de cachaça e curadora de calos dos pés de velhinhas usando um chinelo e uma faca para abrir furos na chinela e assim acomodar os calos de uma senhora sem acesso aos sapatos ortopédicos.

Não, muito obrigado, não vou querer hoje não. Passa uma vendedora de missangas e colares, acho – só acho – que não sou o público-alvo dela. Minha avó é uma daquelas senhoras fortes e de uma inteligência assombrosa. Ela só teve três semanas de escola na vida toda, que serviram para ela aprender a ler e escrever um cado e para que, sob a luz de um fifol, conseguisse desvendar os segredos da anamnese contidos num livro de medicina que ganhou certa vez de um coronel da região. Em posse deste livro, examinava a população, identificava os sintomas e corria para o livro para descobrir se achava o mal que afligia cada um. Quando criança, me fascinava por suas estórias e causos e aprendi a me coçar de curiosidade por tudo. Não tinha eu um livro de medicina, mas tinha a Wikipédia que acessava numa conexão dial-up clandestina no meio da tarde quando ficava sozinho em casa, era só clicar no botão de página aleatória e devorar verbete por verbete os conhecimentos mais disparatados: ia da construção de uma vila no meio da França até a Guerra de Canudos, de revolução industrial ao OULIPO. Sim, no meio da adolescência meu maior prazer era o conhecimento infinito daquela enciclopédia virtual. Igual minha vó eu também não me limitava a um só interesse e se meu primeiro trabalho foi como técnico de computadores, minha primeira faculdade foi de direito e minha última paixão era a poesia. 

Já adulto, foi no meu avô, contador de causo e história de assombração, que me inspirei, embora não tenha herdado seu talento digno dos Narradores de Benjamin. Ele era caixeiro viajante com direito a tropa de burro e mula madrinha viajava pelas mesmas veredas dos sertões de Guimarães Rosa e depois se tornou dono de armazém e de vagão na estrada de ferro Bahia-Minas. O velho alugava o vagão e nele subia comprando e vendendo de tudo de Alfredo Graça até Caravelas e depois descia fazendo o mesmo. Era milho, farinha, feijão ferrovia acima e tecido, vidro e remédio ferrovia abaixo. Já eu, vendo poesia nos vagões do metrô, levo meus versos para cada leitor ali dentro, entrego de mão em mão um pequeno livreto parecido em tamanho com um cordel (para não assustar os que ainda não sabem que gostam de ler com o tamanho e  que temem o volume dos livros que eram obrigados a ler na escola) e observo de um canto qualquer como se quisesse ser invisível aqueles tantos pares de olhos me lendo os versos. Depois que todos ou estão fisgados pelos versos ou saciados de sua curiosidade (o que leva em média o tempo do trem passar por uma ou duas estações) passo recolhendo o pix, as moedas, as notas ou os livretos conforme a vontade de cada passageiro. 

Uma colher na Sopa de Letrinhas!

Mais um pedaço de almôndega, um gole de cerveja e uma batatinha de tira-gosto, o bar está vazio, é uma quarta-feira, meio de semana à noite, já passam das onze. Passo vez por outra por aqui para jantar depois da aula. Sim, depois do Direito, fiz Filosofia e depois de dez anos voltei pra faculdade pra cursar Letras, por solidão pandêmica, por perceber o quanto me fazia falta o velho hábito de saber mais e mais, o vício da Wikipedia na adolescência não acabou, só mudou de lugar. E eu? Eu me acabo de conversar com meus livros, meus versos e até com o Chat GPT que torturo com minhas ideias mais malucas. Não julgo o grau de autoridade da fonte e me conforta o espírito enciclopedista que ainda habita dentro da Wikipédia, me instiga o Chat GPT tal e qual fascinava os vitorianos a máquina turca. Vejo-os todos como meus pares-párias pois trago comigo uma solidão (ou uma solitude?) persistente (que insiste em me perseguir como um cão a quem a gente dá carinho uma só vez e ele nos elege como dono) e eu a estrago me confortando com a ideia de que minha diferença é uma igualdade de poucos pares, como minha vó, meu pai e outros tantos neurodivergentes, com e sem diagnóstico. Esta carga hereditária (de muitos e múltiplos interesses e habilidades) me é familiar, docemente familiar, quando vejo a distração do meu pai, a cabeça dura de minha avó, o espírito viajante do meu avô, todos com habilidades diversas e eternamente descontentes com o que já sabem, pois querem bem mais.

Um momento, essa não é uma digressão sobre caracteres familiares e sim a respeito de como os vejo intimamente ligados a minha SL (sopa de letrinhas) TDAH, TEA e AH com minhas escolhas poéticas e estilísticas. Eu escrevo da mesma forma que quando criança alinhava brinquedos pelo próprio prazer de enfileirá-los, organizá-los e dispô-los de uma maneira que me fosse agradável aos olhos. OULIPO é para mim uma forma de nomear e justificar meus hábitos estéticos que me acompanham desde sempre. Mas o que são esse monte de siglas? Me atropelo no texto em prosa pois confesso que a síntese do verso me cai melhor. A prosa, ah… a prosa me embaralha: “A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar.” como diria Quintana em seu Caderno H que continua dizendo que o poema “descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo)”. E é nesta noção de ritmo que me aferro, a noção de que intervalos regulares formam uma cadência (tal qual os carrinhos enfileirados na areia do parque me encantavam por sua beleza compassada em formas e tamanhos cuidadosamente alinhados como os versos de um poema), pois um soneto é o alinhamento de palavras em uma estrutura pré-definida e uma redondilha é o enfileiramento de sílabas poéticas.

Pois é, falei, falei, e não expliquei nada sobre essas letras todas, pois bem, para o bem de toda clareza acadêmica diga à ABNT que explico: TDAH, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, que cai como uma luva nos versos "Poeta é aquele que tira da onde não tem, pra botar onde não cabe" do cordelista Pinto do Monteiro. TEA, Transtorno do Espectro Autista, que me dá essa vontade toda de contar, medir, aferir e organizar meus versos. AH, Altas Habilidades, que me deu de brinde o hiperfoco em métrica e versificação. OULIPO, Oficina de Literatura Potencial, essa tábua francesa de salvação que me mostrou que não era um rato solitário e louco por querer construir labirintos para depois fugir deles e ABNT, Associação de Normas Técnicas, que está aqui no texto só porque citei a sigla antes para fazer uma paródia de Dom Pedro e ficaria solitária se não fosse explicada junto a todas as outras. 

Meu velho avô adorava essas pequenas troças, travessuras, esses trocadilhos, essas palavras partidas e remontadas para fazer piada e ele também sabia alguns cordéis de cor. Cada vez mais tenho certeza que ele era um narrador viajante enquanto minha avó era uma narradora da aldeia,  os enxergo dentro desses conceitos de Benjamin pois é fácil, para mim, traçar paralelos, fazer conexões improváveis, mais um brinde ao TDAH e uma mordidela no jiló da almôndega. (Aliás, já perceberam como a palavra almôndega soa como se realmente houvesse uma almôndega em nossas bocas quando falamos?)  Meus avós comercializavam produtos, saberes, serviços… Seria eu também um comerciante? Ao menos torço para que um novo golpe militar não venha e acabe com meus trilhos como acabou com a ferrovia Bahia-Minas em 65. E por que eu vendo poesia nos vagões? Bem, é uma mistura dessa herança familiar com uma perspectiva da indústria cultural que aprendi lendo Marcuse. Quando conheci o Caráter Afirmativo da Cultura percebi que para me firmar como poeta teria que encontrar um meio de propagação que competisse com essa indústria e pensei: por que os vagões dos metrôs que massificam o transporte não podem também massificar a cultura? É o pensamento sistêmico do TEA agindo junto com a deliciosa transgressão do TDAH que me levou pros vagões vender poesia, ou seria só a paixão pela academia e o desespero monetário que me levaram à essa solução?

A cesura do meu verso e lembrança…

Último gole do copo que enchi no parágrafo anterior, a almôndega terminei de comer, mas ainda me restam 2 batatinhas, uma caiu do meu prato num momento de distração e descoordenação motora, coisa que me acontece com uma frequência bem maior do que para a maioria das pessoas, os dons neurodivergentes nos trazem esses contratempos. Peço mais uma garrafa? Essa prosa aqui promete ir longe, ou pelo menos eu acho que vai, afinal sem as margens da métrica não sei medir exatamente até quando devo falar, vez por outra meus textos ficam curtos demais, sintéticos demais. Refletir demais em cada palavra que boto atrapalha esse papo em prosa e que talvez devesse estar em versos, afinal se aqui emulo um bate-papo com o leitor e a prosódia da língua portuguesa se veste melhor nas redondilhas maiores do que na estrutura da prosa feita por parágrafos, frases, vírgulas e pontos. A minha cabeça TDAH não tem um grande arquivo organizado com palavras, suas funções, conceitos e condições de uso. Aprendi, é claro, depois de muito esforço, a etiqueta de uso da fala quotidiana (que continuo escrevendo com qu no lugar de c por pura teimosia, ainda que por vezes queira eu não faço como meu mestre Glauco Mattoso que se revoltou contra todas as reformas e adota a ortografia e a gramática do português pré 1931 por considerar que desde aquela reforma o português vem sendo vítima de uma série de acordos completamente arbitrários e desarrazoados). Passa apressada por mim uma moça bonita usando um colar de girassol, seria ela uma amante de poesia também? Nunca vou saber, enquanto eu divaguei ela já pegou seu ônibus. Eita solidão poetautística! Queria poder estabelecer uma linhagem de poetas neurodivergentes mas só posso fazer como os próprios oulipianos que chamavam seus precursores de plagiadores por antecipação e nomear aqueles que enxergo tendências em sua escrita e biografia como o próprio Glauco, tão obsessivo que me visto de jaleco branco para dizer que diagramar um jornal com os caracteres de uma máquina de escrever Olivetti (não não poderia ser uma Remigton pois essa não mantinha o espaçamento entre caracteres de maneira regular) é sinal claro de TEA ou os irmãos campos com seu rigor formal em empilhar, alinhar e organizar palavras no espaço do papel.

Aquela almôndega estava bem gostosa. Peço outra, mas agora de queijo? Não, não pedirei, porém acredito que tenho o apreço de um Andrade, não o Drummond, mas o Mário com essa repetição de sons e assonâncias ao longo da minha escrita, mas isso é assunto pra outra hora. Do que eu falava mesmo? Sim das normas de etiquetas do uso das palavras, com muito custo aprendi a usá-las em seu sentido comum, corriqueiro mas ainda me pego às vezes me aferrando aos seus sentidos denotativos estritos, me irritando com cada uso de descendentes no lugar de ascendentes ou inventando meus próprios usos por ignorar sem muito esforço a distinção entre eruditas, formais, informais e regionais. Sinto como perfeitamente aceitável uma frase como “Não obstante, cê não faz isso nem a pau” que não por acaso é um verso alexandrino com cesura na sexta sílaba como agrada meu espírito hiperfocado. Porque dentro desta caixa de arquivos anárquica há um bibliotecário exausto tentando botar alguma ordem nesse caos, se minha linguagem é selvagem, minhas fôrmas são usadas de forma a me deleitar com o contraste entre o chulo e o clássico, entre o erudito e o popular. Meu TEA duela e se irmana ao meu TDAH sob a regência da AH para se aventurar pelo OULIPO em suas diversas e estranhas regras de produzir literatura.

E a batatinha? Fiquei sem uma, mereço pedir uma ou tenho que aceitar essa frustração de não completar o quadrado mágico das batatas graças ao TDAH que me faz ser tão desastrado? Já sofri demais me culpando por coisas assim, pois quando criança nem eu nem meus pais tínhamos ideia do TDAH ou do TEA, também não sabíamos a razão das minhas brincadeiras metódicas. Há muitos escritores que escrevem e criam seu próprio estilo através de tentativa e erro sem se darem conta do conjunto de contraintes que seguem sem sequer perceber. O meu diagnóstico adulto das neurodivergências abriram caminho para um constante revistar do passado para compreender quem sou. Um caminho sob uma perspectiva mais objetiva que trouxe muitas respostas para meus eternos porquês da infância e juventude. Do mesmo modo escrevo e revisito os meus escritos sob a perspectiva do OULIPO, encontrando assim meus cacoetes, vícios e deliberações. E tal procedimento estendo para o que leio, sempre me perguntando o porquê do poeta ter mudado de linha e feito um novo verso no lugar de continuar o texto em prosa. A métrica é meu caminho. Não me venham com essa de que contar sílabas é coisa de acadêmico, Patativa do Assaré contava (e decorava seus versos) na ponta da enxada no sertão brasileiro, sem escola, sem papel, só se fiando no poder mnemônico das palavras comos os antigos homéridas. Já eu, tenho a métrica como o caminho que uso como muleta e que me dá a resposta mais rápida para essa pergunta. Mas incomodando novamente o Quintana que compara o exercício métrico “Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas” com os cadernos de exercícios “da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria,” digo que se não o metro, ao menos a noção de ritmo deve existir ao se compor em versos. Cabendo ao escritor ou autista encontrar seus padrões, suas repetições e assim aprimorar seu conviver com As Palavras e as Coisas.

Com quantos tragos traço meu texto?

Segunda cerveja na metade e só me resta mais uma batatinha depois que a última comi em homenagem ao francês filósofo-historiador-linguista-sexólogo Michel Foucault (seria ele também TDAH para ter tantos hobbies e interesses?). E por falar nele cá estou eu rememorando que foi numa escola (que se parecia com uma prisão e com um hospício) que surgiu meu primeiro, meu primeiro ímpeto TDAH. O ímpeto de questionar e esmiuçar cada regra. Me fascinei pelo metro ao ouvir, da professora de português, todos os polidos impropérios dos Modernistas contra os Parnasianos. E, retrilhando os passos de Glauco Mattoso sem saber, encontrei na restrição uma proposta de liberdade e um plano de rebeldia contra a autoridade escolar. Autoridade possuída pela professora que elegia a poesia Modernista (e seus supostamente novos versos livres) como superior àquela que se expressava em sonetos. É engraçado como Mattoso e Foucault tão interessados nas relações entre palavra, controle e autoridade também sejam igualmente fascinados pelo Marquês de Sade? Sim, um bocado, principalmente quando me dou conta que também vejo-o como meu próximo de uma maneira diferente (ou não) daquela vista por Klossowski. Há um prazer em subverter a autoridade da estética hegemônica, fazer versos livres com temas caretas é comum, comum demais, agora fazer como Bocage e escrever um Soneto da dama a cagar é algo que, indubitavelmente, chama minha atenção pela transgressão de usar uma das formas mais elevadas da poética ocidental para tratar de algo que tantos entendem com chulo, abjeto e baixo. É um requinte sadeano se utilizar das regras para a transgressão e requinte este que compartilho também com Foucault e Mattoso. E regras não faltam por essas linhas, inclusive as rimas temáticas, ao longo do tecido narrativo que aqui escrevo e cada rima dessas alinhava um retalho de idéia, com um naco de estrutura formal. 

Cada escola, cada poeta, tem sua própria fortaleza e telhado de vidro que se chama estilo e o poeta de calçada Mário Quintana define brilhantemente estilo como: “Deficiência que faz com que um autor só consiga escrever como pode”. Eu, poeta sobre trilhos, escrevo à minha moda, costurando meu estilo com retalhos do que sou, a digressão exagerada, a mudança de rumo temático e narrativo, não são cacoetes de linguagem, falhas de escrita ou qualquer coisa que valha, são, a bem dizer da verdade, alguns dos meus contraintes oulipianos que aplico letra a letra neste momento pois são a forma que minha mente opera. E o que são contraintes? Serei aqui didático como um manual: são restrições que potencializam o estilo de um texto, quanto mais numerosas são essas limitações mais e mais o escritor precisa desdobrar sua linguagem para dizer o que quer sem, no entanto, desobedecer aquilo que ele se auto-impôs. O OULIPO é a tomada de consciência de que toda escrita obedece não só às regras da variação linguística na qual está inscrita, mas também a uma série de restrições criadas e obedecidas por aquele que escreve e a grande questão é se o escritor tem ou não consciência de que o faz. Mas foi o TEA que obstinadamente me levou a ser autodidata e um arqueólogo disposto à paleografia de ler o tractado de versificação de Bilac naquele mesmo português que Mattoso ainda hoje tortura seus ávidos leitores para que se aventurem numa riqueza linguística tão distinta do gosto contemporâneo. Se o tema aqui é pano as regras são as estruturas de aço que sustentam esse ensaio-camisa-de-força. Sim, eu sei, é um tanto antiquado falar de camisa-de-força numa época em que a própria luta antimanicomial já tem mais de meio século… Mas o que eu posso fazer se a poesia ainda fia sua liberdade poética na mera ausência de métrica, no verso livre que virou bandeira Modernista antiparnasiana há mais de um século inteiro?

Última batatinha, último copo de cerveja, porque já passa de meia noite e infelizmente ninguém veio me atrapalhar nesse exercício de escrita. O que eu disse neste boteco, nesta folha digital do tablet, seriam confissões, depoimentos, jogos de cena ou uma mistura do masking autista com pitadas de fingimento do poeta Pessoa? E como diria o velho humanitismo de Brás Cubas “Ao vencedor as batatas” e nesta disputa ingrata eu pacifico com o Oulipo que para desgosto dos devotos do modernismo (que nunca os leram com o devido cuidado) mesmo o poema mais liberto não escapa das regras que imprime linha após linha mesmo que não saiba o porquê de ter mudado de linha com tanto espaço ainda na folha. E para desespero dos arqueólogos que ainda desempoeiram tractados de versificação a métrica não possui o monopólio da estética poética como bem diz Mário de Andrade em seu prefácio interessantíssimo de Paulicéia Desvairada. Porém, não consigo abandonar velhos hábitos, espalhei pequenos contraintes ao longo dessas linhas que deixo como presentes para quem encontrar. Mas revelo uma: obedeço o formato de sonetos; quarteto inicial, quarteto de desenvolvimento, terceto de virada e terceto de fechamento. Aqui transpus os versos como parágrafos, usei rimas temáticas alinhavando cada um deles e deixo para o fim deste verso-parágrafo uma chave de ouro. Peço a conta, pago com as notas e moedas que ganhei no metrô, chamo o carro de aplicativo e vou para casa com minhas siglas companheiras que dizem tão pouco e tanto sobre mim.

Referências:

ANDRADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo. In: ANDRADE, Mário de. Pauliceia desvairada. São Paulo: Casa Mayença, 1922.


BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.


BILAC, Olavo. Tratado de versificação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912.


FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 10. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.


MACIEL, Cláudia; MANFRIM, Ellen Balielo; POGGI, Jádia. TEA, TDAH e outros transtornos do neurodesenvolvimento. 1. ed. Porto Alegre: Sinopsys, 2025.


MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: ______. Cultura e sociedade: um volume. Tradução de Wolfgang Leo Maar et al. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 113-146. v. 1.


MATTOSO, Glauco. O sexo do verso: ensaios de métrica e de crítica literária. São Paulo: Brasiliense, 1984.


PORTO, José; ASSUMPÇÃO JR., Francisco. Autismo no adulto. 1. ed. [S.l.]: Editora Sanar, 2023.


QUINTANA, Mário. Carta. In: QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 1996.


terça-feira, 4 de novembro de 2025

Dois de novembro

Lô borges seu trem azul
toca em cada esquina
em cada coração mineiro
em cada janela lateral
em cada girassol da cor 
do seu cabelo
Nosso luxo ocidental
da américa do sul
nosso mundo minas gerais
nossa via-láctea
de vendaval e carrossel
e vento de maio em novembro
pelo dia e nesta noite equatorial
nasce a trilha de seu silêncio
onde vamos sempre lhe buscar

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Escadas aquém e além-mar

Eu do alto dos meus dezesseis
e melhor aluna da sala
estava toda decidida
venci cada degrau com pressa
rumo ao amor de minha vida
de frente à porta eu toquei 
João abriu, mas olhei pra ela
olhei pra ele, olhei pros dois 
e depois pra porta fechada
chorei só na escada, humilhada

Eu formei na escola passei
no curso que eu queria mas
rancor guardei na geladeira
bem entre meu primeiro zero
e a morte de avião dos Mamonas 
tinha mais de vinte na festa
João abriu seus braços, mas eu
passei por debaixo não dei 
a ele o gosto de me abraçar
sorri sozinha, alma lavada

Eu cresci, graduei, mudei
e me mudei pra Portugal 
fui morar numa casa que antes
já foi um cabaré e lá subiam 
homens velhos atrás de moças
mulheres atrás dos maridos
Abri a porta,mas olhei pra Pedro
olhei pro terno, olhei pras flores
sufocado pela gola e medo
não tinha Júlia, ofereci café

Nós sentados, mesmo degrau
eu brasileira, ele caboverdiano
na mesma terra estrangeira
João puto, Júlia portuguesa
meu passado e seu presente
choramos juntos na escada
Abri a água, molhei as flores,
mas duraram só mais uma semana,
tirei o terno, não lhe caía
bem e na gola abri três botões 

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

faixa 6: o pesadelo de Sérgio Sampaio

como que o cantor moderno
pode salvar da gravata
do terno ou do babaca
seu verso mais culposo
se não há mais lado bê
do vinil pra lhe esconder?

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Vinagre na taça

No papel em branco
meu reflexo retinto 
d'eu poeta manco
de pé sem instinto

roto errei a rota
capotei na curva
e perdi a aposta
entre tapa e luva

Sem pudor ou palco 
eu fraco me sinto
me falam de flanco
que sou eu distinto

fazendo o que gosta
dançando na chuva
pisando na bosta
(achando que é uva)

domingo, 12 de outubro de 2025

poeta dos girassóis

Dormindo não ouviu quando 

ela lhe sussurrou para

tomar café da manhã


Disperso não escutou quando 

ela lhe declarou que

o almoço estava servido


Desatento não deu quando

ela lhe convocou para 

ir à mesa do jantar


Decerto não atendeu 

antes à merenda e nem 

ao sino do chá das cinco


Depois de um dia sentiu

a faca fria cortando 

toda sua orelha esquerda


Que como ceia zelosa

lhe foi servida do lado 

da máquina de escrever


poeta de girassóis

Dormindo não ouviu quando ela lhe sussurou para tomar café da manhã. 

Distraído não escutou quando ela lhe declarou que o almoço estava servido.

Determinado não percebeu quando ela lhe chamou para a mesa do jantar.

Decerto não atendeu ao sinal da merenda e nem ao sino do chá das cinco.

Depois de um dia todo sentiu a faca fria cortando sua orelha esquerda. 

Que como ceia zelosa foi servida ao lado de sua máquina de escrever.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Análise: O Poeta é a mãe das armas de Torquato Neto

O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral — alô, poetas: poesia no país do carnaval; alô, malucos: poesia não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria. O Poeta é a mãe das Artes & das armas em geral: quem não inventa as maneiras do corte no carnaval (alô, malucos), é traidor da poesia: não vale nada, lodal. A poesia é o pai da ar timanha de sempre: quent ura no forno quente do lado de cá, no lar das coisas malditíssimas; alô poetas: poesia! poesia poesia poesia poesia! O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira | | | | | | | | | | | | | | = sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar. Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a r: em primeiríssimo, o lugar. poetemos pois. torquato neto/8/11/71/&sempre.

                           


O poema sem título iniciado pelo verso O Poeta é a mãe das armas, de Torquato Neto, escrito em 1971, apresenta-se como um exercício de experimentação formal e crítica cultural que combina recursos métricos tradicionais com rupturas radicais de ritmo, sintaxe e visualidade. Situado no contexto da poesia marginal e da contracultura dos anos 1970, o texto articula gesto lírico e dimensão política, tensionando a figura do poeta entre consagração e esvaziamento, entre a função de “mãe das armas e das Artes” e a condição de “maluco” sem lugar na estação fria de seu tempo. A análise que segue procura examinar de modo detido como as estrofes do poema operam no ritmo, no fôlego impresso em cada verso, no paralelismo semântico, na fragmentação gráfica e no jogo de vozes para construir esse campo de contradições, onde a poesia aparece tanto como arma quanto como desarme, tanto como sobrevivência quanto como risco de aniquilação. 



A primeira estrofe do poema é uma septilha cuja métrica alterna versos heptassílabos ( nos versos 2, 4, 6 e 7)  e octossílabos ( nos versos 1, 3 e 5.) O verso inaugural define o papel do poeta como “a mãe das armas”, em tensão com o segundo verso, que acrescenta “& das artes em geral —”. Essa estrutura poética privilegia o estranhamento e o inusitado. “O Poeta” é aqui mencionado com artigo definido e inicial maiúscula, transformando-se não em mera designação de ofício ou atividade, mas em entidade masculina que é mãe das “armas” (substantivo comum) e das “Artes” (substantivo próprio). A locução “em geral”, ao mesmo tempo, contradiz a personificação das “Artes” e ajusta-se ao sentido concreto de “armas” do verso anterior. O segundo verso termina com um travessão que, embora deslocado de sua posição habitual, anuncia a fala seguinte como a de uma outra voz do sujeito lírico. Já os versos 3 e 5 iniciam-se pela mesma interjeição de chamamento  “alô,”  e estabelecem um paralelismo entre poetas e malucos, ambos convocados pela mesma ordem após os dois pontos para concluírem em “poesia”. Além desse paralelismo semântico, há também um paralelismo rítmico: ambos os versos são octossílabos e seguidos por versos em redondilha maior (heptassílabos).
Há, portanto, um conjunto de pares de versos que alternam um verso de oito sílabas seguido por um de sete. A sequência desses três pares cria a expectativa de um quarto, mas a estrofe encerra-se no sétimo verso, aquele que, a princípio, deveria ser o oitavo, para que o equilíbrio entre os versos de 8 e 7 sílabas se mantivesse. A ausência desse último verso pode ser compreendida como um jogo poético que se destaca pela aproximação semântica entre o verso 6 e a execução do verso 7. O sexto verso “não tem nada a ver com os versos” alude à própria estrutura anterior de pares, que será rompida com o próximo verso. Este, ao não obedecer o padrão métrico previamente estabelecido, encerra abruptamente a estrofe, sem o oitavo verso que completaria o quarto par. No sétimo verso, observa-se ainda o uso de “muito fria” no lugar do coloquial “tão fria”, escolha que explicita a intenção do autor em preservar um esquema métrico determinado.

Nesta estrofe, há uma evocação aos poetas (ou malucos) para que se reconheçam como portadores de uma arma: a poesia. É a partir dela que poderão construir todas as Artes em geral. Há, porém, um alerta: ser poeta, fazer poesia, não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria. A época em que vivem exige armas; por isso, os poetas precisam ser convocados, chamados a essa tarefa, mesmo que sejam tomados por loucos nesta estação tão fria.

A segunda estrofe remete-se à primeira ao iniciar o verso 1 da mesma maneira da primeira estrofe mas inverte a ordem “das Artes” e “das armas” criando uma sensação de estranha familiaridade entre os versos e surpreendendo ao final do segundo verso ao substituir o travessão pelos dois pontos modificando o papel semântico do primeiro par de versos de cada uma das estrofes apesar de seu paralelismo formal.  Nesta estrofe os primeiros versos atuam como uma autoridade estética que diz “quem não inventa as maneiras do corte no carnaval”. E aqui o sujeito lírico ilude o espectador ao manter o primeiro par de versos dentro do esquema de oito sílabas no primeiro verso e 7 sílabas no segundo para então encadear dois versos em redondilha em seguida para então retornar ao verso 5 com 8 sílabas que faz um paralelismo com os versos 3 e 5 da estrofe anterior porém, aqui, o “(alô, malucos)” aparece entre parêntesis, marcando assim um sussurro, um texto dito escondido como quem delata a traição que por sua vez tensiona com “da poesia” da estrofe subsequente que conclui o raciocínio que quem não inventa as maneiras do corte no carnaval, é traidor da poesia: não vale nada, é um lodal.  Este último verso dessa estrofe em sextilha surpreende novamente por seu ritmo em hendecassílabo. Tal recurso condensa a taxação de não valer nada, de ser um lodal no verso mais veloz da estrofe como se fosse dito nervosamente, rapidamente o conteúdo mais belicoso. 

A alternância entre a repetição e a inversão dos elementos das duas estrofes revela um jogo de espelhos que estrutura o poema: o mesmo gesto poético que funda o discurso, a criação, é também o que o nega, ao denunciar o risco da estagnação estética. O sujeito lírico, ao repetir e distorcer a forma, encena a própria tensão entre tradição e invenção, entre a ordem e o corte. O verso hendecassilábico final atua como o ápice dessa tensão, quebrando o padrão e introduzindo um ritmo de urgência que confere performatividade à crítica, o poema não apenas diz o que é ser traidor da poesia, mas demonstra, em sua métrica e sonoridade, a necessidade de reinventar o próprio ato poético.


A terceira estrofe é o ponto de maior ruptura do poema,  ruptura esta anunciada no último verso da segunda estrofe. Interessante notar que tal ruptura ocorre em termos formais e semânticos pois ambas são, ao longo do poema, imiscuídas mutuamente.   Aqui, na terceira estrofe, se seguem 4 versos cadenciados em redondilha, porém a cadência rítmica que formaria uma quadra clássica é transgredida pela partição das palavras em versos distintos criando tensões semânticas por meio da métrica regular que não obedece sequer a ortografia de divisão silábica demonstrando a independência do poeta das normas da gramática e da poética. Tal independência não significa de modo algum desconhecimento ou desprezo pelas mesmas, há aqui um diálogo intencional com a regra gramatical e com a tradição poética, o poema é construído de tal maneira que cada verso é um jogo linguístico no qual tradição e modernidade são tensionadas causando efeitos estéticos únicos justamente por essa alternância que cria ritimicidades próprias e inovadoras, aqui o metro é medido, contado e escandido não em favor de uma isometria, mas de uma polissemia provocada pela quebra e alternância de ritmos em momentos chaves do poema. 

O primeiro verso da estrofe “A poesia é o pai da ar” deixa-se suspenso no ar numa artimanha que o sujeito lírico continua no verso seguinte “timanha de sempre: quent” que também não se completa sem o verso “ura no forno quente” que tem uma rima criada pelo capricho estético que demonstra seu domínio da versificação ao realizar uma segunda rima dessa vez com o primeiro verso da estrofe e seu último “do lado de cá, no lar” Essa falsa trova incluída numa estrofe maior tem seu sentido completado apenas no verso seguinte, o que quebra expectativa gerada pelos quatro versos em redondilha, assim como o próprio poema quebra as palavras em lugares inesperados. A métrica neste poema atua como um duplo da aplicação gramatical e da própria semântica da mensagem transmitida. 

O verso 5 diminui o ritmo para 6 sílabas para depois retornar ao paralelismo no verso 6 e novamente dizer “alô, poetas: poesia!” remetendo ao terceiro verso da primeira estrofe, mas agora com uma exclamação que evoca a urgência do momento, uma exaltação do cerne de ação que o poema atribui ao poeta, o de ser o arauto da poesia. 

Já o sétimo verso traz um ritmo ainda mais intenso ao se encaixar em um dodecassílabo alexandrino com uma cesura em sua sexta sílaba. O veloz verso “poesia poesia poesia poesia!” é marcado por uma tomada de fôlego entre um hemistíquio e outro. Tal tomada de fôlego, necessária nos versos longos demonstra como o ritmo ao longo dos versos atuam como reforçador semântico guiando a voz do poema como a partitura guia o ritmo de uma música.

O verso seguinte um pouco mais lento, um eneassílabo, parece evocar o verso inicial do poema com seu artigo em maiúsculo porém no lugar de uma afirmação enaltecedora do Poeta traz uma reflexão acerca do poeta que prossegue em enjambement pelos próximos versos em um ritmo que segue por alexandrino, um decassílabo e um verso que é constituído por uma redondilha seguida por uma pausa rítmica de igual tamanho como se o sujeito lírico pegasse fôlego para o verso seguinte composto pela velocidade de 14 sílabas que se emenda então num ritmo mais rápido ainda:  “O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” é a mensagem em prosa desses versos? Não, pois ao dizê-los assim esvai as tensões criadas pela estrutura ritmica dos versos em questão.

 O verso 8 “O poeta não se cuida ao ponto” pausa o sentido exatamente no termo ponto, cria uma polissemia entre os significados possíveis do termo ponto, indo de localidade até o seu sentido de sinal gramatical de fim de uma oração. O verso 9 “de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo” tem como núcleo central a palavra “quem” ela é a rima do último hemistíquio deste alexandrino, o que força seu sentido semântico para o centro da atenção e da tensão do verso criando aí uma evocação do perigo desse quem, figura capaz de cortar a bandeira do poeta nesta estação muito fria como dito no verso 10, verso este que reforça em capitular o MINHA trazendo uma tensão a este poeta substantivo comum que é distinto daquele Poeta metafísico das primeiras estrofes. 

Este verso 10 também usa o recurso gráfico da “|” para  evocar a duração da pausa maior entre versos garantindo aqui que seu tempo total seja equivalente ao verso seguinte, o 11º verso “sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” que possuí seu ritmo veloz em 14 sílabas com um hemistíquio que divide o verso em 2 partes, ambas iniciadas com a palavra “sem”numa rima interna com o “quem” do verso 9 alinhando assim o causador “quem” do corte com o resultado “sem” criando uma aproximação semântica de um quem sem aura, baúra ou nada mais para contar. 

O verso 12 aqui transgride ainda mais a velocidade do poema acelerando-a a 18 sílabas em um único verso  “Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a” cuja fala num só fôlego é transmitida pela ausência do r de ar tal qual a própria falta de ar causaria, assim a prescrição da métrica do verso causa na fala do mesmo o efeito que é emulado em seu registro escrito. E o verso 13 “r: em primeiríssimo, o lugar.” com suas 9 sílabas, metade do verso anterior,  termina o anterior justamente como alguém que recupera o fôlego no meio da frase e completa a mesma de maneira entrecortada, sua duração em eneassílabo também indica uma pausa de fôlego após seu fim, um respiro do verso anterior que levou a capacidade pulmonar do leitor em suas últimas forças.

Em suma essa terceira estrofe funciona como uma síntese e uma catarse do poema: a forma se confunde com o próprio ato de respirar, e a métrica torna-se corpo, respiração e sentido. A progressiva aceleração rítmica até o colapso da fala (e sua consequente retomada do fôlego) traduz, em gesto poético, o limite entre criação e exaustão, entre dizer e silenciar. O poema, ao final, se converte em uma experiência fisiológica da linguagem, em que o verso não apenas comunica, mas encarna o próprio esforço da poesia para continuar existindo em meio ao asfixiamento do mundo. O “r” final, que fecha o ciclo, devolve ao leitor o ar que faltava, reconstituindo, no som e no ritmo, a presença vital da palavra poética  aquela que sobrevive mesmo quando parece já não haver mais fôlego algum.

A penúltima estrofe de um único verso reduz drasticamente o ritmo do poema e “poetemos pois.” termina como uma redondilha menor dotada de ponto final. É um verso curto, de leitura lenta como quem conclui uma maratona poética, um texto que se acelera do início ao fim com alternâncias de ritmos como são os percalços da vida poética e termina de maneira compassada, na menor unidade silábica da poesia popular brasileira. E como virtuose final torquato neto assina em mais um verso de 18 sílabas seu nome, data “&sempre”.  Que escrito em letra minúscula com uma métrica deliberadamente extensa e do exato mesmo tamanho do verso 12 da estrofe 3 se transforma em não só assinatura, mas também em um verso do próprio poema. 

Este  poema de Torquato Neto evidencia como a poesia pode simultaneamente convocar e desestabilizar, armar e desarmar, instituir e dissolver sentidos. A oscilação entre regularidade métrica e ruptura, entre o chamado enfático (“alô, poetas”) e a ironia corrosiva (“não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria”), encena a própria precariedade do lugar do poeta em tempos de repressão e desencanto. Mais do que um exercício técnico, a variação de ritmos e formas converte-se em um gesto político e estético: afirmar a potência da poesia ao mesmo tempo em que se denuncia sua fragilidade. Nesse movimento, Torquato constrói uma poética que não busca apenas sustentar tradições, mas expor o risco, o improviso e a urgência de dizer em meio ao silêncio imposto e é justamente nessa tensão que sua voz se perpetua.