Sr. Personna, o que trazes pra mim?
Diário de bordo do Poeta Sobre Trilhos
Publicação em destaque
O autor
Lucas de Castro Lisboa, que adotou o nome artístico de Castro Lisboa e a persona pública de "poeta sobre trilhos", é um poeta, edi...
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Vinagre na taça
domingo, 12 de outubro de 2025
poeta dos girassóis
Dormindo não ouviu quando
ela lhe sussurrou para
tomar café da manhã
Disperso não escutou quando
ela lhe declarou que
o almoço estava servido
Desatento não deu quando
ela lhe convocou para
ir à mesa do jantar
Decerto não atendeu
antes à merenda e nem
ao sino do chá das cinco
Depois de um dia sentiu
a faca fria cortando
toda sua orelha esquerda
Que como ceia zelosa
lhe foi servida do lado
da máquina de escrever
poeta de girassóis
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Análise: O Poeta é a mãe das armas de Torquato Neto
O poema sem título iniciado pelo verso O Poeta é a mãe das armas, de Torquato Neto, escrito em 1971, apresenta-se como um exercício de experimentação formal e crítica cultural que combina recursos métricos tradicionais com rupturas radicais de ritmo, sintaxe e visualidade. Situado no contexto da poesia marginal e da contracultura dos anos 1970, o texto articula gesto lírico e dimensão política, tensionando a figura do poeta entre consagração e esvaziamento, entre a função de “mãe das armas e das Artes” e a condição de “maluco” sem lugar na estação fria de seu tempo. A análise que segue procura examinar de modo detido como as estrofes do poema operam no ritmo, no fôlego impresso em cada verso, no paralelismo semântico, na fragmentação gráfica e no jogo de vozes para construir esse campo de contradições, onde a poesia aparece tanto como arma quanto como desarme, tanto como sobrevivência quanto como risco de aniquilação.
A primeira estrofe do poema é uma septilha cuja métrica alterna versos heptassílabos ( nos versos 2, 4, 6 e 7) e octossílabos ( nos versos 1, 3 e 5.) O verso inaugural define o papel do poeta como “a mãe das armas”, em tensão com o segundo verso, que acrescenta “& das artes em geral —”. Essa estrutura poética privilegia o estranhamento e o inusitado. “O Poeta” é aqui mencionado com artigo definido e inicial maiúscula, transformando-se não em mera designação de ofício ou atividade, mas em entidade masculina que é mãe das “armas” (substantivo comum) e das “Artes” (substantivo próprio). A locução “em geral”, ao mesmo tempo, contradiz a personificação das “Artes” e ajusta-se ao sentido concreto de “armas” do verso anterior. O segundo verso termina com um travessão que, embora deslocado de sua posição habitual, anuncia a fala seguinte como a de uma outra voz do sujeito lírico. Já os versos 3 e 5 iniciam-se pela mesma interjeição de chamamento “alô,” e estabelecem um paralelismo entre poetas e malucos, ambos convocados pela mesma ordem após os dois pontos para concluírem em “poesia”. Além desse paralelismo semântico, há também um paralelismo rítmico: ambos os versos são octossílabos e seguidos por versos em redondilha maior (heptassílabos).
Há, portanto, um conjunto de pares de versos que alternam um verso de oito sílabas seguido por um de sete. A sequência desses três pares cria a expectativa de um quarto, mas a estrofe encerra-se no sétimo verso, aquele que, a princípio, deveria ser o oitavo, para que o equilíbrio entre os versos de 8 e 7 sílabas se mantivesse. A ausência desse último verso pode ser compreendida como um jogo poético que se destaca pela aproximação semântica entre o verso 6 e a execução do verso 7. O sexto verso “não tem nada a ver com os versos” alude à própria estrutura anterior de pares, que será rompida com o próximo verso. Este, ao não obedecer o padrão métrico previamente estabelecido, encerra abruptamente a estrofe, sem o oitavo verso que completaria o quarto par. No sétimo verso, observa-se ainda o uso de “muito fria” no lugar do coloquial “tão fria”, escolha que explicita a intenção do autor em preservar um esquema métrico determinado.
Nesta estrofe, há uma evocação aos poetas (ou malucos) para que se reconheçam como portadores de uma arma: a poesia. É a partir dela que poderão construir todas as Artes em geral. Há, porém, um alerta: ser poeta, fazer poesia, não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria. A época em que vivem exige armas; por isso, os poetas precisam ser convocados, chamados a essa tarefa, mesmo que sejam tomados por loucos nesta estação tão fria.
A segunda estrofe remete-se à primeira ao iniciar o verso 1 da mesma maneira da primeira estrofe mas inverte a ordem “das Artes” e “das armas” criando uma sensação de estranha familiaridade entre os versos e surpreendendo ao final do segundo verso ao substituir o travessão pelos dois pontos modificando o papel semântico do primeiro par de versos de cada uma das estrofes apesar de seu paralelismo formal. Nesta estrofe os primeiros versos atuam como uma autoridade estética que diz “quem não inventa as maneiras do corte no carnaval”. E aqui o sujeito lírico ilude o espectador ao manter o primeiro par de versos dentro do esquema de oito sílabas no primeiro verso e 7 sílabas no segundo para então encadear dois versos em redondilha em seguida para então retornar ao verso 5 com 8 sílabas que faz um paralelismo com os versos 3 e 5 da estrofe anterior porém, aqui, o “(alô, malucos)” aparece entre parêntesis, marcando assim um sussurro, um texto dito escondido como quem delata a traição que por sua vez tensiona com “da poesia” da estrofe subsequente que conclui o raciocínio que quem não inventa as maneiras do corte no carnaval, é traidor da poesia: não vale nada, é um lodal. Este último verso dessa estrofe em sextilha surpreende novamente por seu ritmo em hendecassílabo. Tal recurso condensa a taxação de não valer nada, de ser um lodal no verso mais veloz da estrofe como se fosse dito nervosamente, rapidamente o conteúdo mais belicoso.
A alternância entre a repetição e a inversão dos elementos das duas estrofes revela um jogo de espelhos que estrutura o poema: o mesmo gesto poético que funda o discurso, a criação, é também o que o nega, ao denunciar o risco da estagnação estética. O sujeito lírico, ao repetir e distorcer a forma, encena a própria tensão entre tradição e invenção, entre a ordem e o corte. O verso hendecassilábico final atua como o ápice dessa tensão, quebrando o padrão e introduzindo um ritmo de urgência que confere performatividade à crítica, o poema não apenas diz o que é ser traidor da poesia, mas demonstra, em sua métrica e sonoridade, a necessidade de reinventar o próprio ato poético.
A terceira estrofe é o ponto de maior ruptura do poema, ruptura esta anunciada no último verso da segunda estrofe. Interessante notar que tal ruptura ocorre em termos formais e semânticos pois ambas são, ao longo do poema, imiscuídas mutuamente. Aqui, na terceira estrofe, se seguem 4 versos cadenciados em redondilha, porém a cadência rítmica que formaria uma quadra clássica é transgredida pela partição das palavras em versos distintos criando tensões semânticas por meio da métrica regular que não obedece sequer a ortografia de divisão silábica demonstrando a independência do poeta das normas da gramática e da poética. Tal independência não significa de modo algum desconhecimento ou desprezo pelas mesmas, há aqui um diálogo intencional com a regra gramatical e com a tradição poética, o poema é construído de tal maneira que cada verso é um jogo linguístico no qual tradição e modernidade são tensionadas causando efeitos estéticos únicos justamente por essa alternância que cria ritimicidades próprias e inovadoras, aqui o metro é medido, contado e escandido não em favor de uma isometria, mas de uma polissemia provocada pela quebra e alternância de ritmos em momentos chaves do poema.
O primeiro verso da estrofe “A poesia é o pai da ar” deixa-se suspenso no ar numa artimanha que o sujeito lírico continua no verso seguinte “timanha de sempre: quent” que também não se completa sem o verso “ura no forno quente” que tem uma rima criada pelo capricho estético que demonstra seu domínio da versificação ao realizar uma segunda rima dessa vez com o primeiro verso da estrofe e seu último “do lado de cá, no lar” Essa falsa trova incluída numa estrofe maior tem seu sentido completado apenas no verso seguinte, o que quebra expectativa gerada pelos quatro versos em redondilha, assim como o próprio poema quebra as palavras em lugares inesperados. A métrica neste poema atua como um duplo da aplicação gramatical e da própria semântica da mensagem transmitida.
O verso 5 diminui o ritmo para 6 sílabas para depois retornar ao paralelismo no verso 6 e novamente dizer “alô, poetas: poesia!” remetendo ao terceiro verso da primeira estrofe, mas agora com uma exclamação que evoca a urgência do momento, uma exaltação do cerne de ação que o poema atribui ao poeta, o de ser o arauto da poesia.
Já o sétimo verso traz um ritmo ainda mais intenso ao se encaixar em um dodecassílabo alexandrino com uma cesura em sua sexta sílaba. O veloz verso “poesia poesia poesia poesia!” é marcado por uma tomada de fôlego entre um hemistíquio e outro. Tal tomada de fôlego, necessária nos versos longos demonstra como o ritmo ao longo dos versos atuam como reforçador semântico guiando a voz do poema como a partitura guia o ritmo de uma música.
O verso seguinte um pouco mais lento, um eneassílabo, parece evocar o verso inicial do poema com seu artigo em maiúsculo porém no lugar de uma afirmação enaltecedora do Poeta traz uma reflexão acerca do poeta que prossegue em enjambement pelos próximos versos em um ritmo que segue por alexandrino, um decassílabo e um verso que é constituído por uma redondilha seguida por uma pausa rítmica de igual tamanho como se o sujeito lírico pegasse fôlego para o verso seguinte composto pela velocidade de 14 sílabas que se emenda então num ritmo mais rápido ainda: “O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” é a mensagem em prosa desses versos? Não, pois ao dizê-los assim esvai as tensões criadas pela estrutura ritmica dos versos em questão.
O verso 8 “O poeta não se cuida ao ponto” pausa o sentido exatamente no termo ponto, cria uma polissemia entre os significados possíveis do termo ponto, indo de localidade até o seu sentido de sinal gramatical de fim de uma oração. O verso 9 “de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo” tem como núcleo central a palavra “quem” ela é a rima do último hemistíquio deste alexandrino, o que força seu sentido semântico para o centro da atenção e da tensão do verso criando aí uma evocação do perigo desse quem, figura capaz de cortar a bandeira do poeta nesta estação muito fria como dito no verso 10, verso este que reforça em capitular o MINHA trazendo uma tensão a este poeta substantivo comum que é distinto daquele Poeta metafísico das primeiras estrofes.
Este verso 10 também usa o recurso gráfico da “|” para evocar a duração da pausa maior entre versos garantindo aqui que seu tempo total seja equivalente ao verso seguinte, o 11º verso “sem aura nem baúra, sem nada mais para contar” que possuí seu ritmo veloz em 14 sílabas com um hemistíquio que divide o verso em 2 partes, ambas iniciadas com a palavra “sem”numa rima interna com o “quem” do verso 9 alinhando assim o causador “quem” do corte com o resultado “sem” criando uma aproximação semântica de um quem sem aura, baúra ou nada mais para contar.
O verso 12 aqui transgride ainda mais a velocidade do poema acelerando-a a 18 sílabas em um único verso “Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a” cuja fala num só fôlego é transmitida pela ausência do r de ar tal qual a própria falta de ar causaria, assim a prescrição da métrica do verso causa na fala do mesmo o efeito que é emulado em seu registro escrito. E o verso 13 “r: em primeiríssimo, o lugar.” com suas 9 sílabas, metade do verso anterior, termina o anterior justamente como alguém que recupera o fôlego no meio da frase e completa a mesma de maneira entrecortada, sua duração em eneassílabo também indica uma pausa de fôlego após seu fim, um respiro do verso anterior que levou a capacidade pulmonar do leitor em suas últimas forças.
Em suma essa terceira estrofe funciona como uma síntese e uma catarse do poema: a forma se confunde com o próprio ato de respirar, e a métrica torna-se corpo, respiração e sentido. A progressiva aceleração rítmica até o colapso da fala (e sua consequente retomada do fôlego) traduz, em gesto poético, o limite entre criação e exaustão, entre dizer e silenciar. O poema, ao final, se converte em uma experiência fisiológica da linguagem, em que o verso não apenas comunica, mas encarna o próprio esforço da poesia para continuar existindo em meio ao asfixiamento do mundo. O “r” final, que fecha o ciclo, devolve ao leitor o ar que faltava, reconstituindo, no som e no ritmo, a presença vital da palavra poética aquela que sobrevive mesmo quando parece já não haver mais fôlego algum.
A penúltima estrofe de um único verso reduz drasticamente o ritmo do poema e “poetemos pois.” termina como uma redondilha menor dotada de ponto final. É um verso curto, de leitura lenta como quem conclui uma maratona poética, um texto que se acelera do início ao fim com alternâncias de ritmos como são os percalços da vida poética e termina de maneira compassada, na menor unidade silábica da poesia popular brasileira. E como virtuose final torquato neto assina em mais um verso de 18 sílabas seu nome, data “&sempre”. Que escrito em letra minúscula com uma métrica deliberadamente extensa e do exato mesmo tamanho do verso 12 da estrofe 3 se transforma em não só assinatura, mas também em um verso do próprio poema.
Este poema de Torquato Neto evidencia como a poesia pode simultaneamente convocar e desestabilizar, armar e desarmar, instituir e dissolver sentidos. A oscilação entre regularidade métrica e ruptura, entre o chamado enfático (“alô, poetas”) e a ironia corrosiva (“não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria”), encena a própria precariedade do lugar do poeta em tempos de repressão e desencanto. Mais do que um exercício técnico, a variação de ritmos e formas converte-se em um gesto político e estético: afirmar a potência da poesia ao mesmo tempo em que se denuncia sua fragilidade. Nesse movimento, Torquato constrói uma poética que não busca apenas sustentar tradições, mas expor o risco, o improviso e a urgência de dizer em meio ao silêncio imposto e é justamente nessa tensão que sua voz se perpetua.
sábado, 20 de setembro de 2025
Ideias para livros
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
Musa Carmem
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
nu pêlo
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
O autor
Inspirado pela assertiva de Herbert Marcuse para quem "a poesia torna possível o que já se tornou impossível na prosa da realidade", Lisboa desenvolveu ao longo de sua trajetória o projeto Poeta sobre Trilhos. Iniciado em 2011, a iniciativa consiste na ocupação de vagões de trens nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro por meio da distribuição de seus livretos poéticos. Em termos quantitativos, a ação já resultou na circulação de aproximadamente 80 mil livretos e 3 mil livros. Mais do que um simples dado, esse gesto concretiza uma operação estética que funde circulação literária e ocupação do espaço público, visando atingir um público often excluded dos circuitos tradicionais do livro. Nesse contexto, a metáfora dos trilhos extrapola a noção de deslocamento físico; pode ser lida como a busca por uma poesia em constante movimento, que se insinua nos interstícios da rotina urbana.
A produção literária de Castro Lisboa inclui obras como Sobre Máscaras e Espelhos (2012) e Poeta sobre Trilhos: Diário de Bordo (2014), nas quais se observa uma precoce articulação entre a subjetividade lírica e um olhar crítico sobre a sociedade. Em uma vertente de sua produção, é também coautor, junto com a Chef Pina Otoni, do livro Brincando de Cozinhar(2021), que explora a interseção entre gastronomia e poesia Paralelamente à carreira autoral, Lisboa atuou como editor independente na Prensa Mínima (2012-2016), iniciativa dedicada à poesia experimental, e como curador literário do projeto Poeme-se (2016-2021), onde buscou fomentar diálogos inusitados entre literatura e outras linguagens, como a moda. Essas facetas complementares – de autor, editor e curador – revelam um projeto coerente de atuação cultural que transcende a escrita solitária, investindo na criação de redes e na exploração de fronteiras entre diferentes expressões artísticas.
Sua trajetória acadêmica em Estudos Literários pela UFMG, concluída em 2024, incluiu uma pesquisa dedicada à poética de Glauco Mattoso, analisando a síntese entre concretismo e sonetismo em sua obra. Esse estudo reflete não apenas um diálogo crítico com a tradição literária, mas também a base reflexiva que sustenta sua própria produção. Na prática poética de Lisboa, críticos observam o emprego consciente de formas tradicionais,como a redondilha, de matriz popular, e o decassílabo e o alexandrino, de linhagem clássica, frequentemente tensionadas por um experimentalismo formal e uma ironia paródica. Seus poemas navegam entre o rigor métrico e os jogos de linguagem de inspiração oulipiana, convertendo restrições formais em motor de invenção. É nesse equilíbrio entre disciplina e transgressão que sua voz se consolida, articulando as esferas do acadêmico e do marginal, do erudito e do popular, do corporal e do verbal. Desse modo, Lisboa situa-se como uma das vozes significativas da poesia contemporânea, cujo trabalho explora, de maneira consistente, os limites e as possibilidades do fazer poético.
A circulação da poesia de Lisboa opera por meio de suportes diversificados e deliberadamente não convencionais: desde livretos impressos de maneira austera e cartazes de lambe-lambe até publicações em redes sociais e performances presenciais. Essa multiplicidade não é incidental, mas sim parte constitutiva de uma poética que questiona as hierarquias tradicionais entre o livro como objeto consagrado e a folha solta como veículo marginal. Para o autor, o poema é um fluxo que se materializa de diferentes formas, e o ato de distribuí-lo (seja em um vagão de trem, em um bar ou em um sarau) torna-se extensão da obra em si. Dessa forma, a experiência de leitura é frequentemente mediada pelo encontro fortuito com o texto em contextos informais, deslocando-o das prateleiras e inserindo-o diretamente no tecido da vida urbana.
Como bem sintetizou um de seus poetas de referência, Sérgio Sampaio, "Um livro de poesia na gaveta não adianta nada/ lugar de poesia é na calçada” e é nesse espírito que a prática literária de Castro Lisboa se funde inextricavelmente com sua escrita. Ao ocupar o espaço público, o “poeta sobre trilhos” tensiona a relação entre voz e ruído, corpo e mecanismo urbano. Suas leituras em vagões de trem competem com o fragor das ferrovias e os anúncios de vendedores, criando uma poética do contraste que incorpora a cacofonia da cidade como elemento estrutural. Desse modo, o ruído ambiente não é meramente um pano de fundo, mas matéria prima que se infiltra na sintaxe e no ritmo de seus versos.
Paralelamente, seu trabalho como editor e curador evidencia um compromisso com dimensões pedagógicas e comunitárias da literatura. Ao fomentar redes de circulação e espaços coletivos, Lisboa reforça a ideia de que a poesia depende não apenas da criação individual, mas também de ecossistemas de compartilhamento, posicionando-se, assim, como um articulador cultural para quem a linguagem é, antes de tudo, prática social e gesto de presença.
No campo do erotismo, Lisboa ressignifica uma tradição satírica e libertina que remonta a Gregório de Matos e Bocage, transformando-a em território de experimentação política. Seus poemas eróticos unem ludicidade e confronto, celebrando identidades dissidentes e propondo formas de prazer que desafiam enquadramentos normativos. Dessa forma, o corpo e o desejo tornam-se vetores de uma reflexão crítica sobre poder, liberdade e representação.
O trabalho de Castro Lisboa opera na fratura entre tradição e insurgência. A rigidez da forma fixa não é, em Lisboa, reverência ao passado, mas arma de subversão. O poeta arma-se da disciplina do metro para, em seguida, contaminar sua cadência com gírias urbanas, referências pop e sátiras políticas. O resultado é uma poesia que se reconhece tanto na biblioteca quanto na calçada, tanto no cânone quanto na pichação de muro.
Em sua produção poético-visual, Lisboa explora consistentemente uma vertente de inspiração construtivista. Seu trabalho dialoga tanto com a tradição das vanguardas revolucionárias soviéticas quanto com a herança da arte concreta e neoconcreta brasileira – notadamente em referência a Hélio Oiticica, Lygia Clark e, sobretudo, Glauco Mattoso. Nessas experimentações, a espacialização da palavra opera como um gesto duplamente estético e político. Seus poemas visuais funcionam como dispositivos que tensionam os limites da página, transformando o signo gráfico em um campo de experiência sensível e crítica. Por meio de geometrias precisas, apropriação de símbolos do cotidiano – como ícones digitais, fragmentos de calendários ou estéticas de cartazes urbanos – e jogos de repetição fonética, o poeta constrói composições híbridas, entre texto e imagem, que demandam um leitor ativo e corporeamente engajado.
Longe de um formalismo vazio, essa prática constitui uma estratégia de reapropriação crítica da linguagem visual da cidade. Em poemas como EU sinto tanta a tua falta, Caminhos ou nas séries que dialogam com Não relevo o relevo e Tea ou Chá?, a página ou o cartaz tornam-se infraestruturas de significação, algo entre um mapa, uma sinalização e um circuito de circulação de ideias. O rigor compositivo, nesse contexto, adquire um caráter de militância estética: a restrição formal busca gerar legibilidade em meio ao caos urbano; a modularidade das formas facilita a reprodução e disseminação; e a iconografia familiar transforma o texto em um evento no espaço público. Dessa forma, a operação construtivista de Lisboa converte a linguagem em um artefato móvel e situado, cuja potência reside justamente em sua capacidade de intervir diretamente no tecido da cidade.
No Poetautista, revela-se a inscrição autobiográfica da diferença neurológica em forma de manifesto poético: a condição do autismo deixa de ser deficitária para se tornar potência inventiva. O poeta expõe a fragmentação, o ritmo sincopado da percepção e a lógica própria do TEA como matriz estética. Esse gesto é radicalmente político, pois desloca o campo da clínica para o da criação, do diagnóstico para a enunciação. É poesia que se assume como forma de existir, questionando a normatividade social e cultural.
Em Meditações Patafísicas, Lisboa aproxima-se do espírito jarryano ao tratar a dúvida, a fragilidade e o excesso reflexivo como matéria poética. A patafísica, ciência do particular e do imaginário, ganha corpo em versos redondilhos que ironizam a seriedade da filosofia e transmutam a hesitação em lirismo. Aqui, o poeta autista encontra eco na tradição do absurdo organizado, onde a marginalidade cognitiva é celebrada como riqueza criadora.
Com TEA ou chá?, a poesia se arma de forma épica e militante. A escolha pelas oitavas, com ressonância camoniana, torna-se dispositivo de enfrentamento político. A estrutura rígida da estrofe, tão clássica, é subvertida ao carregar conteúdos de luta, identidade e denúncia. O poema faz da forma uma armadura: o autismo, a diferença e a resistência encontram espaço no campo da epopeia, mas uma epopeia ao contrário, não de heróis míticos, e sim de sujeitos comuns que atravessam o cotidiano marcado por exclusões e preconceitos.
O diálogo com a tradição literária aparece de modo explícito no soneto Cecília Filósofa, que evoca o espírito libertino de Teresa Filósofa. Aqui, o jogo entre virtude e vício, prazer e moral, constrói um espaço ambíguo que conecta a filosofia à sensualidade, aproximando a poesia de Lisboa de uma linhagem crítica que não teme unir erudição e corpo, metafísica e desejo.
Em Poeticamente Sádico, um sonetilho em redondilha maior, a estrutura fixa é assumida como um corpo amarrado, onde a métrica e a rima funcionam como cordas que apertam e excitam o discurso. O poeta encena o prazer estético como prazer físico, erotizando o artifício formal: a rima “crava”, a escansão “geme”, e a poesia, em seu rigor, é experimentada como perversão. Aqui, a contenção da forma funciona como metáfora da contenção erótica, o gozo nasce justamente da disciplina, da limitação e do cálculo.
Já em Contando nos Dedos, um soneto em versos alexandrinos, o poeta se volta contra o próprio jogo da métrica e o regime das formas fixas. A poesia passa a reivindicar o fluxo livre, a desordem consciente, a vaidosa estética da improvisação. Ao ironizar os que “contam poema” e fazem do metro uma penitência, Lisboa tensiona a tradição: denuncia o aprisionamento da poesia à régua métrica e, ao mesmo tempo, insere sua voz no debate histórico entre o verso medido e o verso livre.
Postos lado a lado, os dois poemas compõem um projeto de autocrítica poética: no primeiro, o prazer é justamente a prisão do verso, a escansão que dói e goza; no segundo, a liberdade é proclamada contra as amarras, num gesto de rebeldia contra a “pena/penitência” da métrica. Essa oscilação revela um poeta que não se fixa em uma única estética, mas que explora os limites e paradoxos da poesia como experiência ora como sadismo formal, ora como libertação anárquica. O conjunto sugere que, em Castro Lisboa, a poesia não é apenas produção estética, mas também ensaio sobre a própria natureza do poema, onde a tensão entre forma e liberdade se converte em tema central de sua poética.
Nos poemas formais dedicados a Cecília: o Rondó e o Triolé , Lisboa retoma a tradição de Silva Alvarenga (Glaura) e do lirismo arcádico, mas não como mero exercício de pastiche. O poeta traz para dentro da forma fechada (rondó, triolé, redondilha) uma matéria erótica e contemporânea, marcada pelo pathos amoroso, pela ironia e pela consciência estética. A circularidade da forma os refrãos que retornam funciona como metáfora do vínculo amoroso e da repetição obsessiva do desejo. Aqui, a experiência amorosa se alinha à experiência autista: a repetição, longe de ser um sintoma, torna-se celebração da intensidade e do ritmo interno da vida.
Em sua produção poética, Castro Lisboa converte a tensão entre forma e liberdade em eixo central de investigação estética e política. Obras como Poetautista e TEA ou chá? transformam a neurodivergência em potência criadora, transpondo a experiência autista para o campo do manifesto poético e da epopeia contemporânea. Simultaneamente, Lisboa radicaliza tradições literárias através do erotismo subversivo (como em Cecília Filósofa e Poeticamente Sádico), onde o rigor formal sonetístico é erotizado e questionado, e da apropriação de formas fixas (rondós, triolés) para explorar a repetição como pulsação lírica e existencial. Este movimento dialético atinge seu ápice em pares poemáticos como Poeticamente Sádico e Contando nos Dedos, que encenam uma autocrítica da própria escrita: ora celebrando o prazer da restrição métrica, ora defendendo a libertação anárquica do verso. Assim, sua poesia opera como ensaio permanente sobre o fazer poético, onde o corpo, o desejo e a diferença desafiam não apenas as normas literárias, mas as próprias estruturas de regulação social.
Em seu ensaio Oralidade e Escrita, o poeta Castro Lisboa revela uma consciência literária que se articula entre história, teoria e prática, e que encontra ressonância direta em sua própria produção poética. Nele, Lisboa traça um panorama da transição da oralidade para a escrita, do verso à prosa, apontando como o ritmo, a cadência e o fôlego da fala moldaram a tradição literária desde a epopeia até as formas modernas de narrativa. Esse olhar historicista e crítico é, na verdade, um reflexo do que ele mesmo experimenta em seus poemas: uma poética que resgata o canto, o jogo métrico e a musicalidade da língua, mas tensionando-os com o contemporâneo, com a política, a ironia e o experimentalismo formal.
Enquanto o ensaio diagnostica a perda da oralidade na literatura moderna e enxerga em Guimarães Rosa ou Clarice Lispector tentativas de reintegração desse fluxo rítmico, sua poesia pratica ativamente esse retorno, ainda que por outras vias. Poemas como Poeticamente Sádico e Contando nos Dedos exploram a musicalidade das redondilhas, a repetição, a estrutura lúdica e quase performática do verso breve, em diálogo tanto com a tradição oral (do cordel, da trova, da cantoria) quanto com procedimentos de restrição e jogo poético inspirados no OULIPO. Assim, se o ensaísta enxerga no passado e em alguns modernistas a sobrevivência da oralidade, o poeta a reatualiza, convertendo o ritmo em ferramenta de crítica social, de ironia e de invenção.
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
Meditações Patafísicas XLVII
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Baccanalia
com aqueles ques me inspiram
e agora no meu corpo tem
Augusto dos Anjos e Florbela,
meus primeiros poetas
descobertos bem cedo
bem marcados na dor
do meu adolescer
Tem Raul Seixas e junto
dele vem Sérgio Sampaio e
Rita Lee fazendo da música
poesia: arranhando e arrasando
seus lados bê e me virando
do avesso se não sabia
o que eu queria dizer
Tem Leminski, Hilda Hilst
e Marina Colasanti
cada qual chegado
de diferentes épocas
pra mudar minha escrita
Tem Quintana e Bandeira
pra abusar do lirismo
pra assustar o versolivrismo
e também a métrica
Tem Siba e Guimarães Rosa
pra dizer que o como se diz
é parte do que me constrói
Gregório de Matos tem
e du Bocage também
meus clássicos
Inconvenientes
incontestes
agrestes
Tem Glauco Mattoso e
tem Marquês de Sade
por estética, filosofia,
experimentalismo
descontentamento
transgressão
política
e experimento
É muita gente!
segunda-feira, 11 de agosto de 2025
quinta-feira, 7 de agosto de 2025
Remendo no lácio
sem acento sem memória
é uma estória sem história
um Hamlet sem sua Ophelia
sexta-feira, 25 de julho de 2025
TEA ou chá?
terça-feira, 15 de julho de 2025
sexta-feira, 4 de julho de 2025
desde sempre
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Romântico IV
que é pra lhe fazer carinho
mas ela só diz: me passa
minha garrafa de vinho
terça-feira, 27 de maio de 2025
Ocaso
terça-feira, 13 de maio de 2025
quarta-feira, 7 de maio de 2025
Sextilhas Alexandrinas
quinta-feira, 1 de maio de 2025
terça-feira, 22 de abril de 2025
A madrugada urge
domingo, 20 de abril de 2025
Livro, memória tangível da humanidade
O que é o livro? O que é este objeto que há séculos permeia o cotidiano dos saberes e memórias da humanidade? Como ele surge, do que é feito e como ele afeta a própria noção de quem e como somos? Não há aqui a pretensão de responder essa e nem outras perguntas que surgirão no decorrer deste ensaio, mas sim passear pela historicidade desse objeto que torna tangível a memória, que grava a fala e seus ditos, congelando-os em seu próprio lugar no tempo e no espaço.
Segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges, o livro é um assombroso instrumento criado pelo homem para ser uma extensão de sua memória e de sua imaginação. Seu advento resulta de uma série de invenções humanas voltadas ao desejo de perenizar a memória, a criação e as formas de significar e compreender o mundo. Esse anseio por eternidade é anterior tanto ao livro quanto à escrita. Não por acaso, tantos cantos sagrados como o Gita, a Ilíada, a Odisseia e o Beowulf foram transmitidos originalmente por meio dos versos.
A oralidade, forma primeira da comunicabilidade humana, preservou por séculos as tramas fundadoras dos povos por meio de recursos mnemônicos: a métrica e o ritmo cadenciado asseguravam que toda a cosmogonia de uma cultura fosse retida e transmitida. Antes da escrita, era a alternância marcada de sílabas átonas e tônicas, breves e longas, que sustentava a mnemonia — a memória, em grego. A escrita, inicialmente em tabuletas de barro, madeira ou pedra, depois em rolos de papiro, pergaminho e couro, e finalmente em códices, passou a substituir progressivamente o movimento da oralidade pela fixação da palavra escrita. Seria, pois o livro anterior a própria escrita? E as cadências rítmicas dos versos clássicos uma espécie de primeira forma de registro de um livro ainda que imaterial? Ou é na gênese da escrita, inegavelmente, a origem do próprio livro, afinal sua tangibilidade, materialidade física são condições para sua perfectibilidade?
O livro ocupa um lugar singular entre os inventos do intelecto humano, pois molda a própria noção do ser, sua percepção de si mesmo e do mundo que o cerca. Segundo Vilém Flusser, em A Escrita: há futuro para a escrita?, a escrita não sofre da mutabilidade essencial da oralidade. Por isso, permite que o conceito de história seja fundado: o mito é atualizado a cada vez que é cantado, enquanto o texto, uma vez fixado, narra não apenas um enredo, mas testemunha o tempo em que foi escrito. O livro e a escrita introduzem uma nova percepção temporal: em vez da repetição cíclica dos mitos, instauram a sucessão linear dos acontecimentos. Em seu Soneto 234 Confessional, Glauco Mattoso canta: “Palavra voa, escrito permanece, / garante o adágio vindo do latim. / Escrito é que nem ódio, só envelhece.” O livro, portanto, não possui a vivacidade da voz, mas tem a eternidade como sua maior aliada — e com ela, a capacidade de registrar e atravessar o tempo. Seria essa a razão pela qual o livro é definido por sua tangibilidade? Por sua permanência ao longo do tempo se não de maneira imutável mas de uma maneira cuja sua mutabilidade possa ser percebida? Os concílios católicos que elegeram os livros canônicos são um registro de uma mutabilidade e assim distinta daquela mutabilidade do mito que se altera e alterna com o passar dos cantos de geração em geração sem que sua forma anterior tenha de fato um registro que um dia existiu.
Homero talvez fosse uma singularização dos homeridas, os aedos que, ao longo dos séculos pré-escrita, compuseram e transmitiram seus cantos até que estes fossem fixados com o advento da escrita. Por séculos, a ficção circulou em um regime em que a autoria não era relevante: só com a imprensa é que a identificação dos autores passou a ser exigida, tanto pelos dividendos quanto pela responsabilização dos conteúdos. Até então, apenas os textos dedicados à Verdade — como os sagrados, filosóficos e teológicos — exigiam autoria, pois carregavam a autoridade e o testemunho de quem os escrevia. Com a evolução da imprensa e a revolução técnico-científica, essa relação se inverteu: os textos autorais tornaram-se, em sua maioria, aqueles que os gregos chamariam de mímesis, enquanto os textos voltados à aletheia passaram a ser coletivizados. A academia moderna já não vê a mesma validade em uma única voz: no texto científico, o poder está no respaldo coletivo, na comunidade que atesta e valida o discurso. Entretanto, na contemporaneidade, aparece um novo apagamento da autoria: inteligências artificiais, fake news e a reprodutibilidade técnica tornaram banal a cópia, a mescla e a mixagem de textos e ideias de distintas fontes. A autoria já não é o centro da preocupação — assistimos, talvez, a um retorno à fluidez pré-imprensa. Se no século XX Barthes declarou a morte do autor, no século XXI o próprio conceito de autoria parece estar em perigo.
Estaria a própria tangibilidade do livro também em perigo neste século? O livro, transformado em códigos, transcritos em bytes e projetados em uma tela de LCD é o mesmo livro que era quando escrito em papiros de juta, em pergaminhos de couro ou códices de papel em que o leitor podia percorrer com os dedos, anotar nos cantos ou até rasgar uma página que estava ali no alcance das pontas de seus dedos? Assim como o conceito de autor, a figura do leitor também se transforma ao longo da história. Nos cantos da antiguidade, a leitura era coletiva, oral, performática — e a distinção entre autor e leitor era tênue, quase inexistente. Um povo era, ao mesmo tempo, criador e transmissor de suas narrativas. Na tradição grega, o texto era entoado em público; na Idade Média, passou a ser murmurado, num sussurro entre os lábios. Apenas na modernidade a leitura silenciosa se tornou a norma, marcando o início de uma experiência íntima e individual com o livro.
Clarice Lispector, no conto Felicidade Clandestina, sintetiza essa relação com rara precisão: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.” A leitura, na contemporaneidade, deixa de ser partilha comunitária e se torna experiência solitária e amorosa, revelando o quanto o livro passou a habitar os domínios mais profundos da subjetividade humana. E um livro, que não pode ser mais tocado como antes na tela de um Kindle, pode garantir que a menina se transforme em mulher como descrita por Clarice? Decerto que o apego às letras digitais será distinto daquele que tocava a tinta sobre o papel e nele podia marcar com sua própria grafia, porém a mutabilidade do livro é capaz de encontrar novas maneiras de se adaptar a relação do leitor e do livro para seu constante e novo momento.
Eis que, nesse jogo temporal, surge o jugo do editor — figura que assume múltiplas formas e funções ao longo da história. Desde aqueles que primeiro fixaram os mitos em linguagem escrita, passando pelos bibliotecários de Alexandria, que uniformizaram versões divergentes de obras, elegendo as que se tornariam definitivas. Mais tarde, os membros dos concílios católicos determinaram, séculos após o surgimento das escrituras, quais livros comporiam a versão canônica da Bíblia, No século XIX, os editores de jornais moldaram a narrativa dos romances folhetinescos, publicando-os em capítulos com vistas à venda da maior tiragem possível. Hoje, o editor se transforma novamente, é uma peça dentro da estrutura do mercado editorial de eventos como a FLIP e as Bienais do Livro, mas também lidando com os desafios impostos pelos algoritmos que governam o fluxo de textos nas redes, com base em critérios tão imperscrutáveis e obscuros quanto aqueles que condenaram como apócrifos tantos textos durante o medievo.
Em uma sociedade ágrafa, as técnicas mnemônicas eram o único meio possível de preservar a memória coletiva. Por isso, eram reservadas às obras fundamentais — os mitos que compunham a identidade e a cosmogonia de cada povo. Nesse contexto, a predominância dos épicos era absoluta: sua forma fixa e poética, estruturada por métrica e ritmo, permitia a preservação de narrativas com centenas de versos. Com o advento da escrita, o dispêndio de recursos para conservar tais obras foi drasticamente reduzido. Já não era necessário treinar aedos por toda uma vida para garantir a sobrevivência dos textos sagrados. Ainda em versos, mas agora libertos da necessidade exclusiva de memorização, começaram a circular também as comédias, as tragédias e a poesia lírica — além, é claro, de toda a produção filosófica de seu tempo.
Com os copistas medievais, a produção e preservação de textos alcançou um novo patamar, permitindo que as cantigas populares — de escárnio, de amigo e de maldizer — também fossem registradas para além da memória oral. Mais tarde, com a evolução das técnicas de impressão, a partir dos rudimentos da xilogravura e de outras formas correlatas, uma nova revolução se instaurou. As técnicas mnemônicas, outrora essenciais, passaram a perder espaço progressivamente. Nesse novo contexto, a prosa começou a se destacar entre as grandes obras nacionais, como é o caso de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.
No auge da Belle Époque, é a evolução das técnicas tipográficas que permite ao outrora sonetista Mallarmé tornar-se precursor e inspiração para diversos movimentos literários, especialmente com sua obra Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Se por séculos a poesia ocupou o lugar de gênero maior da literatura, no século XX, com o advento das máquinas offset e da impressão digital, a prosa firma sua hegemonia — um processo que o século anterior já prenunciava. Os movimentos modernistas abraçam o verso livre e sua autonomia em relação às técnicas mnemônicas, numa era marcada pela plena instauração da reprodutibilidade técnica. A popularização de novas tecnologias possibilita o surgimento de movimentos como o Concretismo e o OULIPO, que exploram os limites da linguagem por meio do domínio dos aparatos que a ciência oferece. Já o século XXI se apresenta com uma miríade de formas de fixação da memória: o livro assume formatos digitais, podem ser lidos em tablets, celulares, notebooks, e e-readers. Os textos transitam à velocidade da luz pelas redes de computadores, e os meios de publicação e produção textual tornam-se acessíveis de um modo que nenhum dos autores dos textos sagrados poderia sequer imaginar.
As condições materiais do livro foram determinantes na transformação dos paradigmas que envolvem sua concepção, autoria, edição e recepção. À medida que as técnicas de produção, circulação e preservação da escrita evoluem, alteram-se também os modos de escrita e leitura possíveis. O estilo, a linguagem e mesmo os gêneros literários moldam-se às possibilidades e limitações oferecidas por cada suporte. Compreender a história dessas transformações técnicas é essencial para entender como a linguagem não apenas se adequa, mas se funde às materialidades de sua época, formando com elas um amálgama indissociável entre forma e matéria.