Ele já teve uma casa boa para ir em cada capital. Para pernoitar, se deixar ficar e se arrumar. Antes, depois e após cada festa e funeral. E eram muitos os que já fora convidado. Sim, já fora convidado. Não mais. Nunca mais. Hoje nesse primeiro de maio de ruas desertas e infectadas doía sua barriga de fome, suas víceras de vício.
Nunca fora por assim dizer um trabalhador. Mas sempre um entusiasmado defensor de suas causas. Suas pernas cansadas pararam, sua respiração pesada por detrás da máscara pediam por um ar fresco inexistente.
Sacou o molho de chaves, ela não trocaria o segredo, não importa o que acontecesse. Era contra seus princípios. Arrastou o portão de ferro que rangeu em protesto como sempre fez nesses trinta e três anos que moravam ali. Ele riu-se havia vinte que já não morava mais. Mas onde ele diria que era sua casa senão ali?
O Primogênito pousou seu pé no primeiro degrau e forçou seu corpo magro ao alto como se o mesmo de repente pesasse muitas arrobas. Vencendo os degraus pouco a pouco viu que o arrombado do seu irmão caçula fora alertado pelo portão escandaloso como acontecia sempre que ele tentava voltar desapercebido das escapadas noturnas.
Marcelo vestia em seu corpanzil de ex atleta obeso um passeio completo com direito gravata, quem mais faria isso para visitar os próprios pais no feriado no dia do trabalhador, ou como diria o próprio dia do trabalho? Mas não, não usava máscara tinha dinheiro para pagar as vacinas importadas que custavam seu peso em ouro.
- Marcos, Mamãe não vai lhe receber - disse Marcelo em meio a mini floresta que era a entrada da casa após a escadaria - Nós estamos no meio do almoço.
- Mas já são três e quarenta e cinco da tarde - exasperou Marcos de olhos injetados - Ninguém almoça tão tarde.
O portão lá embaixo bateu, ambos os irmãos ignoraram solenemente. A campainha estava estragada novamente?
- Quinze pras quatro - Marcelo, corrigiu friamente - Você bem sabe como papai se demora para cozinhar nos fins de semana.
- Quem se importa, não vou me demorar - insistiu
- Hoje não Marcos, não comigo aqui.
O portão bateu novamente, agora ambos se entreolharam e o ar contaminado pesou ainda mais.
- Você não tem esse direito. - Marcos rosnou por detrás da máscara.
- Não só tenho como estou fazendo. - sorriu triunfante de orelha a orelha e completou como dá ordens a um subalterno - Já está na hora de ir vá ver quem está no portão, sua mãe espera por seu filho. Parece que você não conseguiu estragar de todo o garoto.
Fuzilado por aquelas palavras tateou cegamente sem resposta o corrimão da escada, desceu como um cão enxotado da porta da igreja, desceu cambaleante se apoiando nos espaços vazios que encontrava pelo caminho até se separar com o portão dedo duro que xingou mentalmente pela milionésima vez. Ao abrir o portão deu-se de cara com o grande clichê, a sua versão mais jovem, melhorada, sem todas as suas burradas, erros e cagadas.
- Pai - Miguel olhou pra ele num misto de espanto e alegria e o abraçou - Não esperava ver você aqui. Vovó deve estar tão feliz! Já faz meses que ela fala que estava preocupada contigo.
- Não pude entrar, Marcelo. - Marcos cortou secamente.
- Filho da Puta! - Gritou Miguel na fúria dos dezoito anos. - isso não vai ficar assim.
- Não faça isso, não se exalte assim, não compre essa briga. Eu não valho a pena - os olhos de Marcos estavam completamente vazios - escolha melhor do que eu as brigas que vai entrar.
- Então eu vou com você, vamos almoçar juntos! - Miguel disse num estalo - Abriu um restaurante de comida inuite novo que está todo mundo comentando que adoraria que fosse comigo.
- Eu já almocei são quinze pras quatro - mentiu Marcelo - quem almoça a essa hora? Além do mais mamãe iria ficar muito triste em não ver seu neto favorito. - completou rindo
- Mas eu sou o único!
- Justamente!
- Como eu lhe encontro?
- Meus contatos continuam os mesmos.
- Mas você nunca responde.
- prometo que agora vou responder
- Vamos almoçar juntos essa semana?
- Vamos.
- Promete?
- Prometo.
Marcelo deu um abraço afetuoso em seu filho, o viu subir as escadas, fechou e trancou o portão.
Caminhou sem rumo ou direção. Sentou numa praça. Sentia fome. Mas pior que isso era o que lhe despedaçava o orgulho. E se pôs a chorar o velório da sua vida de merda.