A minha vida é irreal, surreal. Muitas vezes se escuta "minha vida daria um livro" mas não é meu caso. Minha vida não daria um livro pois não possui qualquer ponta de verossimilhança. Sim, eu moro na cidade do Rio de Janeiro e vivo as custas de meus versos. Sim, eu vivo de poesia! E antes que os românticos relembrem o casal que vive de amor lhes digo. É meu trabalho, levo poesia de mão em mão nos vagões dessa cidade louca.
Pensando como meu pai, mãe e irmão administradores eu procurei um nicho de mercado, um espaço carente de cultura e principalmente de poesia. Poetas urbanos o Rio está cheio, transbordando. Mas só nos lugares de sempre. É impossível passar na frente do CCBB, Teatro Municipal, Biblioteca Nacional sem encontrar com essas incríveis figuras...
Eu acho que seria mais um se não fosse por esse tino que veio de família. Meu pai sempre me contou a história de dois funcionários de uma empresa de calçados que foram mandados para a India, o primeiro voltou dizendo que não recomendava de jeito nenhum instalar lá uma fábrica pois ninguém lá usava sapatos, já o segundo voltou dizendo que deviam se preparar imediatamente pois lá ninguém AINDA usava sapatos.
Na frente dos centros de cultura todos já estão de certa maneira saturados de poesia, vêem e lêem todo dia arte, literatura, poesia. E são sempre os mesmos frequentadores, um público bem restrito. Dentro dos vagões eu encontro gente de toda sorte que teve o azar de não ter tempo, oportunidade, interesse de degustar um pouco de arte naquele dia. Meus livretos são algo raro dentro dos vagões. São calçados novos num lugar onde tantos nunca experimentaram uma par de sandálias.
O prazer que levo para esses leitores em potencial gera todos os tipos de reações e hoje foi mais um daqueles dias chuvosos que parecem que se não rendem muita grana pelo menos dão ótimas estórias. Sai de casa hoje depois de um bocado de esforço para vencer a preguiça, mas finalmente consegui! A primeira viagem Tijuca-Gal. Osório não foi lá essas coisas, todo mundo desinteressado, com frio e dormindo. Algumas poucas almas tinham um lampejo e me deram cinco reais cada uma em alguns vagões. Um jovem negro que parecia que tinha saido de um dia longo levou meu livro "Sobre Máscaras e Espelhos" com um sorriso branco no rosto. Mas era uma daquelas viagens desestimulantes sem muitas reações positivas.
Cheguei em Ipanema torcendo para que a volta fosse um pouco melhor, mas não foi. A mesma desanimação e sonolência na maioria dos vagões. O desânimo já ia me abater quando resolvi trocar de linha em Botafogo e seguir o itinerário em direção a Pavuna. Sabe como é, já estava ruim ali, não custava arriscar a sorte em outra linha. Em partes deu certo, havia muita gente animada, feliz e rindo nos vagões. E dai choveu moeda, vagão por vagão os livretos foram vendidos e recebidos com sorrisos lindos. Isso me empolgou que nem vi que passei pela Estação Central. "A estação Central é a última estação para a transferência entre as linhas um e dois" Dessa vez eu não escutei essa frase da moça do aviso sonoro.
Mancada minha, já era tarde demais e a volta os vagões estariam desertos, como já estava tudo fodido mesmo continuei ali seguindo em direção a Pavuna pois pelo menos a ida tinha gente em cada vagão. Mas como eles não são infinitos acabei o último vagão da composição e saltei em Maria da Graça. Agora era encarar a volta. Enquanto esperava o trem que me levaria até a Central e da central até minha estação de desembarque eu fui dar uma conferida nos rendimentos do dia.
Foi hilário constatar que tinha recebido praticamente a mesma grana indo pra zona sul e indo pra zona norte. Na zona sul menos gente contribuiu com muito e na zona norte muita gente ajudou cada um com um pouquinho. Pode parecer estranho mas fico mais feliz com várias pequenas contribuições do que com uma grandona. Sinto que faço mais diferença, que estou sendo melhor acolhido por tantos ao invés de só por três ou quatro passageiros da zona sul.
Contado o dinheiro o jeito era encarar a volta e sem surpresa entrei nos vagões desertos. Pouca gente no primeiro um livreto vendido para um casal simpático, No segundo um par de idosas comprou os livretos também, no vagão seguinte fiquei de papo com uma linda loira de cabelos longos e unhas compridas e marmorizadas, ela queria levar o livro, mas não tinha mesmo dinheiro e acabou levando só o livreto.
Troquei novamente de vagão na estação São Cristóvão e era um vagão com apenas seis pessoas, um casal se beijando ao fundo, um jovem no seu Ipad, um senhor de idade de camisa vermelha e uma mulher de seus quarenta anos em uma forte crise de gripe. O casal não parou de se beijar, o jovem do Ipad pegou o livreto mas voltou a mexer no Ipad, o senhor recusou e a mulher pegou o livreto com um sorriso cansado no rosto.
Caminhei pelo vagão esperando o tempo passar, vi que o jovem realmente não ia largar o Ipad por nada e a mulher quando me viu chegando perto perguntou se eu estava vendendo eu fiz que sim com a cabeça e sorri. Ela tinha guardado o livreto em sua bolsa e então o retirou e começou a lê-lo. Nisso chegamos a estação Cidade Nova onde entrou um par de meninas novas mas que recusaram o livreto em meio a um papo muito animado. Estávamos quase chegando na Central e peguei o livreto do jovem do Ipad, ele me entregou sem desgrudas os olhos da tela.
Caminhei em direção a mulher que estava agora com uma cara bem melhor e disse: "Poesia faz bem né? Quanto custa?" eu como sempre disse que o preço era livre, que poderia contribuir como quisesse e ela começou a remexer na bolsa até que resmungando para si mesma "Só tenho cinco centavos" mas dai olhou pra mim com uma cara de iluminação e perguntou: "Você fuma um baseado?