Todos os dias eu travo
uma batalha sem fim
com as palavras
e o que elas querem dizer
com o que elas dizem pra mim
com o que elas dizem pra você
Já me olharam espantados quando digo que sou poeta e só poeta. Que não canto, nem danço, nem atuo, nem pinto, nem bordo, que "só" ...
![]() |
Na foto: As 14 edições dos meus livretos (incluindo edição erótica) o primeiro livro: Sobre Máscaras e Espelhos, o livreto do Fora de Área, do Zuza Zapata e do Josué Carlos |
Além de ganhar chicletes de canela de lindas meninas, chocolates de doces senhoras, coca-cola e pururuca dos vendedores do trem e poesia dos poetas que encontro ao vender meus versos nos trilhos. Há uma outra coisa que sempre é divertido quando acontece. Que é quando recebo moedas estrangeiras! Sim, eu já estou fazendo um tour monetário com os diferentes trocados que recebo em troca dos livretos.
Tem moeda do peru que ganhei de um mochileiro que estava cruzando o pais, um dólar americano que ganhei de um casal que estava falando em inglês mas eram brasileiros, um dólar octogonal canadense que não sei quem me deu... É... eu não sei quem me deu pois tenho o costume de agradecer pelo livreto comprado mas não olhar o valor recebido. Gosto de poder tratar com a mesma simpatia o leitor que me dá centavos e o que me enche de notas.
Normalmente não conto o dinheiro até o fim do dia. Apenas retiro as moedas do bolso quando começa a ficar pesado demais e jogo dentro da bolsa de moedas. Após horas vendendo poesia ali nos trilhos essa bolsa fica parecendo uma algibeira medieval. E costuma fazer a alegria dos caixas de supermercado e bares que eu vou. Não são raras as vezes que eu escuto um: Acabou nosso problema de troco!
Falando em fazer a alegria, uma jovem mulher de cabelos curtos e pintados de vermelho realmente acreditou em meu sonho de levar a poesia a lugares onde ela nunca esteve. Já era tarde e eu tinha acabado de chegar até a Pavuna e me sentei distraído num dos bancos para arrumar minha bolsa e voltar a vender na volta.
Ela chegou toda tímida e me perguntou se eu ainda tinha dos livrinhos, acostumado com as pessoas que mudam de ideia na última hora e querem levar pra casa o livreto acabei abrindo a bolsa e peguei um livreto e entreguei para ela com um sorriso cansado. Ela pegou o livreto, guardou na bolsa e colocando minha mão entre as dela deixou uma nota muito dobrada dizendo para que eu não desistisse do meu sonho. E foi embora muito apressada sem me dar tempo de agradecer ou dizer nada. Foi o maior valor que eu já recebi por um livreto mais que o dobro do maior anterior.
Trabalhei contente não só pelo valor mas também porque vi que de norte a sul do Rio de Janeiro havia quem se encantasse por poesia, havia quem valorizasse o que eu faço contribuindo cada um a sua maneira para a poesia continue a viajar sobre os trilhos dessa cidade que acolhe os artistas com tanta alegria.
Caminhando pela rua ele veio em direção contrária a minha, olhou-me nos olhos, passeou pelos meus cabelos, desceu por meus lábios e enquanto sorria seus olhos secaram meu decote. Passou por mim, mas eu pude escutar seu telefone tocando:
-Oi amor, não paro de pensar em você!
Chegaram meus livretos novos! É a primeira edição colorida! Consegui encontrar uma gráfica graças ao Zuza que faz o trabalho por um preço mui acessível, acabou ficando a cópia mais barata que seria no xerox que eu costumava ir. E o melhor, posso pagar com cartão de crédito e só pagar os livretos muito depois de vendê-los.
Eu gosto do requinte que é usar as próprias engrenagens do sistema para subvertê-lo. Tento todo dia encontrar novos meios de usar a nossa querida industria capitalista que explora igualmente meios de transporte, graficas e cultura contra a sua própria estrutura.
Os novos livretos ficaram muito chamativos! Os leitores adoraram e foi um dia de intenso movimento nas estações. Acabei sendo pego em Cantagalo mas foi tranquilo, achei que ia dar algum problema mas os seguranças foram muito educados comigo e só me tiraram do sistema. O grande problema é que eu estava em Cantagalo e ali é longe demais das duas estações mais próximas.
Acabei optando por caminhar pela Rua Barata Ribeiro até chegar a estação Siqueira Campos onde voltei ao meu trabalho habitual de espalhar a poesia pelos trilhos do metrô. Nesse vai e vem cheguei até a Saens Peña e voltei vendendo vagão a vagão. Não é que dentro de um desses, na altura da Carioca, não encontro um amigo que bati bons papos na praça São Salvador?
Ele me convidou para a São Salvador, para beber um pouco e papear. Um chorinho aqui, uma conversa de cá, algumas latas de cerveja depois era hora de ir embora. Caminhei até o Largo do Machado onde pus em prática um truque carioca que acho o máximo.
No rio o transporte público é caótico e muitas vezes as empresas de ônibus lhe obrigam a pegar duas conduções para chegar a um destino cuja distância não é lá tão grande para justificar duas passagens. Com isso surge o Surf de ônibus que consiste em entrar no primeiro ônibus que vai na direção que você quer e perguntar se vai para onde você quer. Se for, que maravilha! Tá chegando em casa rapidinho, se não. Você desce e está um pouco mais perto de casa...
Já tive que surfar umas três vezes para sair do Largo do Machado e chegar na Lapa, mas dessa vez o motorista foi bonzinho comigo e me deixou na lapa. Uma gentileza que deixou minha noite mais feliz. Entrando no ônibus perguntei ao motorista se ele parava no ponto onde eu teria que descer para chegar em casa. Antes do motorista responder uma moça simpática me respondeu que sim, que ele passava por lá e então ela girou a roleta e foi se sentar.
Encantado por essa gentileza dela, passei pela roleta e ao passar por ela entreguei um livreto de poesia e agradeci pela informação. Sentei lá atrás do ônibus e continuei minha viagem pensando no dia seguinte, nos livretos que teria de dobrar e grampear para encarar mais um dia de poesia sobre trilhos e tudo mais. Mas a hora de descer ela me jogou pela janela do ônibus um recado muito singelo que dizia assim: "Obrigada! A arte ainda vai salvar o mundo!" E tinha um monte de beijos de batom naquele bilhete. Num dos cantos um rabisco, que eu acho que era seu telefone que ela rabiscou por algum motivo que nunca vou saber.
Nem todo dia é dia de poesia. E o Rio de Janeiro não cansa de me surpreender. Jamais vou compreender o porquê exato do luto sempre que chove na cidade maravilhosa. Entrei dentro do metrô e me choquei com as caras mal-humoradas de todos. Sério, tava todo mundo com cara de enterro. E tudo porque caia uma leve chuva que para mim só tinha aliviado o calor estranho que se abateu na cidade em pleno inverno.
Caras de enterro, pessoas mal humoradas e eu parecia ser uma presença errada e feliz num ambiente onde todos estavam celebrando o enterro do sol. E assim eu fui de Saens Peña até Gal. Osório (alguém já reparou na quantidade de penha que tem aqui no rio? É Penha, Penha Circular, Alto da Penha, Saens Peña... Depois eu tenho que pesquisar e descobrir de onde vem esse nome). Foi uma viagem daquelas de poucos amigos, mas encontrei alguns rostos conhecidos, alguns clientes habituais que já fazem coleção dos meus livretos e tudo mais. Mas a esmagadora maioria tava mesmo afim de só voltar pra casa e se recostava nos bancos de olhos fechados.
Na volta de Gal. Osório para Saens Peña tudo seguia no mesmo ritmo até que uma senhora, de cabelos loiros pintados, que estava de pé pegou um livreto meu e começou a lê-lo em voz alta para os amigos e tudo virou uma farra naquele grupo. Todos rindo felizes e contentes a poesia viva na voz dela. Foi um lampejo de felicidade num dia tão cinzento. Colocou cor no dia e mostrou que a poesia pode vencer as nuvens mais carregadas.
Eu fiquei ali curtindo aquele momento espontâneo de poesia no metrô, foi delicioso e me deu uma revigorada daquelas. Tão envaidecido que perdi o tempo das estações e quando vi paramos na Uruguaiana e o vagão ficou apinhado de gente, completamente lotado! Pois é, paguei o preço pela minha vaidade e foi com muita dificuldade que consegui pegar os livretos de uns poucos que queriam devolver e de muitos que animados pelo recital iam levar pra casa os livretos.
Sai do vagão depois de dar um livreto de outra edição para a simpática senhora e quando sai ela voltava a ler os poemas em voz alta para seus amigos. Chegando no vagão seguinte senti o cansaço por ter trafegado pelo vagão lotado e a despeito da alegria do vagão anterior esse estava morto novamente, com caras mal humoradas. É, eu desanimei e aproveitando a deixa que o vagão estava chegando na minha estação desci e fui para casa.