O JARDIM
O Jardim aparece como alegoria a multiplicidade do universo segundo a metafísica de Clarice Linspector em Água Viva. É um elemento cuja a metáfora abarca em si todo o universo da Natureza Espinosiana, "Deus ou seja Natureza" é uma expressão que define bem a concepção de Clarrice em seu panteismo feito em prosa poética dotado de uma polissemia própria e pungente.
Em uma honesta tentativa de decifrar Clarice Linspector e seu feérico livro Água Viva para uma árida metafísica resolvi por bem não abrir mão do lirismo absurdamente indissociável dessa obra e fazer uma análise mito-poética de sua especificidade universalizante.
"Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo - o tento misturar palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha."
Jardim é o instante-já onde a Natureza se revela ao leitor em toda a sua compreensão possível de mundo é a forma inteligível que o conhecer humano concebe para ascender ao divino e ao transcendental. Vale dizer que por seu caráter mito poético O Jardim não é mera metáfora do universo em sua totalidade é ele de fato in natura. O olhar rápido e a imediaticidade revelam o primeiro e mais direto contato com a Verdade que o Jardim representa, a natureza é tautológica per si é “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”.
O verso de Gertrude Stein seduz ao um entendimento imediato que apenas a Natureza quando vista pelos olhos poéticos consegue traduzir-se, traduzir-se não. Apreender, pois é um processo que não se prende aos intelectualismos semânticos e sim um processo que se dá por transcendência do conceito em ato de si.
“Sei da história de uma rosa. Parece -te estranho falar em rosa quando estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistérios animais. De dois em dois dias eu comprava uma rosa e colocava-a na água dentro da jarra feita especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. Até que houve determinada rosa. Cor-de-rosa sem corante ou enxerto porém do mais vivo rosa pela natureza mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões.”
Rosa, a máxima flor, presentifica-se em meio ao natural reino dos bichos, os próprios reinos são criação do humano em sua tentativa vã de classificar, nomear e dar significado à poética do Jardim. O cor-de-rosa é uma perfeita representação do estado aparentemente indistinto do real pela ótica humana, mas pela Natureza é representação máxima de um estado que é vivo e verdadeiro. Mesmo que não alcançado pela dialética de olho e mente de quem observa a Rosa.
A prisão da rosa no cárcere doméstico é uma alegoria forte da linguagem que tenta a todo custo dar conta do real sacrificando-o, murchando-o em prol de sua domabilidade, de sua domesticação ao espaço da mente humana. Nomear o Ser é restringí-lo à uma pálida expressão de si mesmo. A linguagem humana aponta, sugere, faz-se uma sombra sob a Verdade e não a compreede, assim é esperar que a água do jarro nutra eternamente a Rosa que ornamenta a mesa da sala de jantar.
"Para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo é com delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites, fronteiras com o quê? sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando. Estou cheia de acácias balançando amarelas, e eu que mal e mal comecei a minha jornada, começo-a com um senso de tragédia, adivinhando para que oceano perdido vão os meus passos de vida."
A compreensão de si que se insere no contemplamento do Jardim é de uma total indentificação entre o eu e o mundo. Uma indissocialidade tântrica que permeia o pensamento Clariceano de tal forma que não há espaço para a metáfora morta o que há é uma absoluta multiplicidade que dissolve o Eu entre as acácias amarelas, entre o espírito da liberdade e as raizes da realidade.
O Suor, elemento tragicamente humano, contrasta como resíduo indesejável da tentaiva humana de lançar luzes sobre a Verdade. A realidade em seu frescor está nos limites fronteiriços das possibilidades do entendimento racional e apenas a poética é capaz de tomar para si um vislumbre momentâneo dessa totalidade panteística.
"Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais o que existe. Antes te dou com prazer o néctar, suco doce que muitas flores contém e que os insetos buscam com avidez. Pistilo é órgão feminino da flor que geralmente ocupa o centro e contém o rudimento da semente. Pólen é pó fecundante produzido nos estames e contido nas anteras. Estame é o órgão masculino da flor. É composto por estilete e pela antera na parte inferior contornando o pistilo. Fecundação é a união de dois elementos de geração - masculino e feminino - da qual resulta o fruto fértil. "E plantou Javé Deus um jardim no Éden que fica no Oriente e colocou nele o homem que formara" (Gen. 11, 8)."
Em Água Viva Lispector partilha com Espinoza de um panteismo cristão que torna Natureza o divino, indissocia e funde num universalismo, aqui simbolizado pelo Jardim, todo o Amor que há enquanto Verdade. E é nessa fusão que se encontra a narrativa de Clarice que sendo uma narradora também é personagem e narrada de sua própria obra. O eu-lirico dessa prosa profundamente poética imiscui-se do Divino para ter em si o initeligível que é próprio da existência que é mesmo quando não dita ou não significada.
A dolência das flores, elemento-símbolo do jardim. contrasta a primeira vista com o Desejo de um Criador e numa descrição absolutamente profana da Flor enquanto sexo e geradora de vida. Clarice inverte a concepção de Criador unindo no Éden todo o humano presentificado no néctar da Natureza. O suco doce das Flores é buscado com avidez pelo inseto mas também pelo próprio homem que sendo parte da Natureza tenta negar que é uno ao Todo nesse Jardim.
"Mas conheço também outra vida ainda. Conheço e quero-a e devoro-a truculentamente. É uma vida de violência mágica. É misteriosa e enfeitiçante. Nela as cobras se enlaçam enquanto as estrelas tremem. Gotas de água pingam na obscuridade fosforescente da gruta. Nesse escuro as flores se entrelaçam em jardim feérico e úmido."
A gruta com suas sombras é uma caverna onde o homem contemplas as suas sombras sob a pálida luz fosforescente. É um indicativo do espaço humano dentro desse universo polissemântico, de apenas perceber as sombras, o obscuro. Um leve contorno daquilo que é de fato.
A avidez descrita por Lispector é parte da ânsia humana que se desvela num mundo onde o homem não participa mais. O Jardim Feérico vai para além da compreensão humana pois é o espaço onde cobras dialogam com as estrelas, onde a virulência da realidade não tenta impor seu domínio por completo, onde a Vida e a Verdade coexistem em plena harmonia sem mediações artificiais e onde o mistério é aceito como tal.
" No Jardim Botânico, então, fico exaurida. Tenho que tomar conta com o olhar de milhares de plantas e árvores e sobretudo da vitória-régia. Ela está lá. E eu a olho."
A contemplação da vitória-régia é uma sintese perfeita da postura da autora frente ao Real. Um simples Ser-em-si. O olhar precedido da existência e nada mais. O Real enquanto presentificação do Ser garante ao olhar do Jardim um êxtase místico. Uma verdadeira existência que esgota o ser humano, a contemplação do Real, exaure o indivíduo pois o mesmo não é capaz de abarcar toda sua infinitude. E a contemplação per si deve bastar pois a linguagem não pode mais do que sugerí-lo Indicar a Natureza é máximo que a mente finita do homem pode fazer em sua comunicabilidade desprovida da universalidade contida no Ser.
A recorrência do Jardim na prosa de Clarice denota o eterno desejo humano de domesticar a Natureza, de tê-la sob sua capacidade intelectiva e de vontade. Seja por preces ou tubos de ensaio é o homem com sua linguagem tentando cada vez mais dar conta dessa infinitude que o ultrapassa mas que mesmo assim o fascina. A poética de Clarice é uma ode ao humano que conta grãos de areia imaginando-se colecionador de estrelas.